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Imagine poder lembrar um dia especial em detalhes. Ou ter à mão informações burocráticas que perdemos tempo procurando, como telefones, extratos bancários ou contratos. Pense nas vantagens de não ter dúvida na hora de responder ao médico como anda sua pressão ou desde quando um sintoma passou a incomodar. O engenheiro americano Gordon Bell, 74 anos, decidiu fazer a experiência e registrar em detalhes seu dia-a-dia digitalmente. Todos esses dados são arquivados no computador dele, que desenvolve um programa para encontrar essas informações com um clique. Ou, no futuro, com um comando de voz.

"Há cinco anos, eliminei o papel da minha vida", conta Bell. A história começou quando um amigo lhe pediu para escanear livros dele. O engenheiro não só concordou como também percebeu que poderia converter montanhas de celulose para bits e se livrar de papéis e documentos difíceis de catalogar e manter organizados. Em 1995, ele iniciou o projeto MyLifeBits – o nome é um trocadilho com a palavra bits, que em inglês significa tanto "parte" quanto a menor unidade de informação processada por um computador. Mesmo com a ajuda de uma assistente, o trabalho, que incluiu desde as fotos de sua infância até imagens de canecas de estimação, levou sete anos. "Consegui tirar muito lixo da minha vida. O fim da bagunça é um dos pontos altos do projeto", acredita.

O engenheiro usa os dados arquivados para fins práticos, como achar um número de telefone ou rever detalhes de uma conversa com seu advogado. "Assim, tenho uma memória muito mais confiável sobre assuntos que, de outra forma, não poderia encontrar", garante. O arquivo tem mais de 450 mil itens, que ocupam pelo menos 219 gigabytes, armazenados num notebook e em um computador desktop. A cada mês, ele cresce cerca de um gigabyte. "Se eu perdesse tudo, seria um desastre. Todos os meus dados financeiros estão ali", diz ele, que é um dos pioneiros na indústria de minicomputadores e hoje trabalha na Microsoft.

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Ao longo do dia, Bell carrega no peito uma das invenções que fazem parte do MyLifeBits: a SenseCam, uma câmera digital acionada por sensores eletrônicos para intensidade de luz, cores e infravermelho. Ela dispara uma foto sempre que se muda de ambiente ou alguém se aproxima. Funções como GPS e sensores e gravadores de áudio já foram testadas, mas ainda não foram incorporadas ao equipamento.

Com o aperfeiçoamento dos softwares de busca e das ferramentas para gravar em áudio e vídeo, Bell acredita que em breve qualquer um poderá ter uma memória auxiliar. Outros equipamentos, como um leitor biométrico que também calcula calorias consumidas e gastas, disponível no mercado americano, poderiam ser incorporados e trazer diversos benefícios à saúde. "Outro aparelho útil é um rastreador de passos, que registra por onde você esteve", explica Bell. "O MyLife- Bits não verte fala em texto ainda, por exemplo. Seria adorável se ele reconhecesse minha voz; eu poderia usar o programa muito mais."

Bell não é o primeiro a tentar fazer um registro pessoal completo. Várias pessoas se tornaram celebridades na internet por publicarem na web boa parte de suas vidas, por meio de textos, áudio, imagens ou vídeos, num fenômeno chamado lifelogging. O canadense Steve Mann foi um dos primeiros. Em 1994, passou a transmitir sua vida 24 horas por dia, em tempo real, pela rede. Décadas antes, o americano Buckminster Fuller documentou sua vida a cada 15 minutos entre 1915 e 1983, em diários que, empilhados, atingiam 80 metros de altura. A diferença entre eles e Bell é que, com o MyLifeBits, a idéia é manter as informações privadas e com usos práticos.

Sem levar o exercício de futurologia longe, apenas o contato mais intenso com as próprias memórias pode trazer diversos benefícios, especialmente em grupos de pessoas que têm doenças que afetam a memória, como o mal de Alzheimer. O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Centro de Estudos do Envelhecimento, Luiz Roberto Ramos, acredita que a disseminação de ferramentas como essa pode ser muito útil. "Só a navegação na internet já é um bom exercício", diz. Além de tratamentos por meio de atividades tecnológicas, o contato com a própria história é um fator decisivo para a saúde mental do idoso. "Eles precisam estar próximos de imagens e ambientes conhecidos. Asilo é exclusão da história de vida deles", afirma.