Mensalão, mensalinho, propina,
auxílio-bandejão. Assalto indireto aos
cofres públicos via imposto sonegado
por caixa 2 (os acusados preferem neologismos mais confortáveis, como recurso não faturado ou não contabilizado).
O País tem cerca de 330 mil presos, praticamente nenhum deles por causa
das tradições centenárias e infelizes
citadas acima. Nesta nação do caixa 2
com batismo empolado, grande parte
dessas pessoas foi empurrada um dia para o xilindró por deslizes miúdos, comezinhos, fraquezas geradas, digamos assim, na crueldade da vida severina. Segundo o Ministério da Justiça, de todos esses presos, ao menos 66 mil poderiam cumprir penas alternativas, por sinal já direcionadas a outros 30 mil condenados.

É o chamado crime de bagatela, produzido sem ameaça, atitude violenta ou risco de agressão física e também sem gerar prejuízo capaz de abalar o patrimônio da vítima. Nestes casos, quase sempre o mal é insignificante diante do rigor desproporcional da pena aplicada. Dias atrás, após uma longa e cara maratona judicial, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, trancou uma ação penal contra dois homens, M.R.V. e M.H.C. Em outubro de 2000, eles furtaram frangos congelados do frigorífico Arraial S/A Agro Avícola e Pecuária, em Itapira (SP). Agora, os dois ladrões de galinha podem seguir a vida tranqüilos. No mesmo dia da decisão do STJ, Cleiton Teixeira Santos foi solto em Goiânia após passar vários dias na cadeia por roubar um produto popular de beleza em um supermercado. Coisa para pagar com R$ 10 e voltar com troco no bolso.

Alto custo – A desproporção entre delito e pena nesses crimes de bagatela chegou
a um ponto inadmissível no caso de Maria Aparecida de Matos, uma paulistana simpática com uma queda juvenil por um creminho e um xampuzinho dos bons.
Uma nova vaga no sistema prisional custa R$ 15 mil e o gasto médio mensal para sustentar um detido é de R$ 1 mil. Esse mesmo custo, para monitorar uma pena alternativa, cai para R$ 70, com índice de reincidência de 5%. Entre os criminosos colocados na cela, esse porcentual sobe para espantosos 65%. São dados do Ministério da Justiça. Por isso, apesar de ainda não se tratar de lei expressa, mas
de um princípio construído a partir de valores constitucionais, um número cada vez maior de especialistas defende a necessidade de se modificar leis para definir esses casos de forma mais branda, ainda no limite da autoridade policial responsável pela prisão em flagrante. Além da desproporção das penas em relação aos atos e do alto custo, esses processos, alegam os juristas, emperram o sistema judiciário já carente de fôlego para resolver questões mais urgentes.

Um dos defensores desta tese é o jurista Luiz Flávio Gomes, professor e coordenador da rede de telensino Pro Omnis/Ielf. “Essas regras mais sensatas trariam obrigações, mas como mecanismo de controle social informal. Com algumas exceções, as coisas poderiam ficar no âmbito da autoridade policial, do delegado, sem prejuízo do controle e da fiscalização do Judiciário. Não se pretende incentivar infrações nem defender ausência de respostas, mas as medidas longas, caras e desproporcionais de hoje são inaceitáveis”, afirma Gomes. Num parecer escrito sobre o caso de Maria, antes da decisão do STJ de soltá-la, Gomes sugere algumas dessas obrigações: “advertir, admoestar, impor obrigações alternativas, pedidos de desculpa, reparação de danos, devolução de objetos, prestação de serviços à comunidade, cestas básicas, pagamentos ou até afastamento de cargos públicos ou de profissões”.

Insignificância – Antes de ser presa pelo xampu, Maria tinha furtado outros
cremes e um par de tênis usado de um vizinho. As duas atitudes renderam uma condenação anterior e serviram de base para o tribunal paulista mantê-la presa até junho. Mesmo esses casos de reincidência com histórico exclusivo de crimes de bagatela, sem contato com a vítima, violência ou uso de armas, começam a ser fortemente condenados. O bombardeio vem até de onde, à primeira vista, não se esperava. “É inadmissível. Alguém precisa mostrar-me o risco efetivo trazido à sociedade por essa moça”, desafia o secretário de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, Nagashi Furukawa. Ele defende uma reforma legal para fixar um valor mínimo como justificativa de detenção e abertura de processo nas delegacias. Abaixo disso, a autoridade policial teria condições legais de liberar o infrator. “Se alguém levar 100 vezes uma caixa de fósforo de uma loja, serão 100 insignificâncias. Se outro levar 20 vezes uma caixa de chocolate, serão 20 casos de bagatela. O status permanece de crime insignificante. Não é aceitável colocar na prisão alguém envolvido apenas com este tipo de crime”, opina. “De tanto conviver com esses exageros, já nem me impressiono mais”, atesta a americana Heidi Cerneka, da Pastoral Carcerária de São Paulo.

Sem amparo legal – A necessidade de se buscar o cumprimento das leis é inquestionável – o Brasil, como se tem visto, paga em atraso e injustiça o fato de grande parte da sociedade insistir em não cumpri-las. Não se faz também a defesa dessas medidas para criminosos escorados em métodos como posse de armas, seqüestros, roubo com violência, constrangimento, assassinato, ou para quem mistura atos leves a tudo isso. Buscam-se regras inspiradas no bom senso para evitar casos como os descritos nesta reportagem. Luis Flávio Gomes lembra de um rapaz mantido na prisão no Estado do Rio por ter furtado um garrafão de vinho. É réu primário. Para o autor da sentença, o princípio da insignificância não passa de “mera construção doutrinária sem amparo legal”. O fato e o comentário do juiz inspiraram a seguinte análise do jurista Gomes: “O positivismo jurídico legalista, quando não temperado pela prudência e equilíbrio do juiz, conduz a aberrações inomináveis.”

Sonia Drigo, advogada de Maria Aparecida e de outras 17 pessoas envolvidas em crimes de bagatela, destaca outro ponto. “Muitas vezes, quem exige a prisão de uma pessoa por furto de uma besteira não percebe que, no ambiente degradado da maioria das prisões, o autor do furto pode ter o caráter corroído e voltar, desta vez para violentar, seqüestrar ou mesmo matar.” Só os crimes são insignificantes nesta reportagem. Os argumentos, como se percebe, merecem uma reflexão profunda.