i104507.jpg

Tratamento Lutando contra um câncer, Eliana foi solta na tarde da sexta-feira 27 por força de habeas-corpus

Assassino confesso da ex-namorada Sandra Gomide, o jornalista Antônio Pimenta Neves, 72 anos, cardiopatia diagnosticada, passou a noite da quinta-feira 26 em sua casa no bairro da Chácara Santo Antônio, em São Paulo. Condenado a 19 anos em primeira instância, pena depois reduzida a 15 anos, Pimenta aguarda em liberdade provisória o recurso que pede, no Superior Tribunal de Justiça, a anulação do júri.

A cerca de 20 quilômetros de distância, a empresária Eliana Tranchesi, 53 anos e em tratamento contra o câncer, teve de vestir a calça bege e a camiseta branca, uniforme obrigatório da Penitenciária Feminina da Capital, no bairro do Carandiru, e passou a noite em uma cela individual de seis metros quadrados, com cama de concreto com colchão, chuveiro com água quente, vaso sanitário e pia. Proprietária da Daslu, maior referência do luxo na América Latina, ela foi condenada em primeira instância pela juíza Maria Isabel do Prado, da 2ª Vara Federal em Guarulhos, a 94 anos e seis meses de prisão por crimes fiscais.

"Isso é uma excrescência", afirmou à ISTOÉ o jurista Hélio Bicudo, 86 anos, vice de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo e com larga militância em defesa dos direitos humanos e dos perseguidos pelo regime militar. "O direito penal brasileiro está dando muito mais importância ao problema financeiro do que à vida. Isso é uma maneira de transformar o Estado democrático em totalitário", diz Bicudo.

Nos meios jurídicos, a prisão da empresária foi vista com ressalvas tanto em relação ao tamanho da pena quanto à aplicação da restrição de liberdade. Segundo a sentença da juíza, os 94 anos e meio são por importação fraudulenta, tentativa de importação fraudulenta, falsidade ideológica e formação de quadrilha. Junto com ela, foram condenados seu irmão, ex-diretor financeiro da Daslu, e outros cinco empresários, cujas companhias serviriam de intermediárias para as compras subfaturadas no Exterior.

Em 13 de julho de 2005, quando Eliana foi presa na chamada Operação Narciso da Polícia Federal, o Ministério Público apresentou a investigação como contraponto à impunidade que privilegiaria a elite nacional. Mas a sentença de agora teve o excessivo rigor reconhecido até mesmo pelo procurador do caso. "Foi uma pena bastante severa", admite Matheus Baraldi Magnani, que ofereceu a denúncia contra os réus.

Reconhecida pela inabalável fé católica, Eliana também pode ser vista como alguém que, como popularmente se diz, foi "pega para Cristo". "A sentença mostra que rico também integra organização criminosa, não só desgraçado com fuzil na mão", diz Magnani. "Considero a sentença não só um exagero, mas uma perversão", diz o criminalista Alberto Toron, diretor do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). "Faz parte de uma mentalidade punitiva segundo a qual os ricos agora têm de ser penalizados com maior rigor." De acordo com Toron, os 94 anos de prisão são a expressão deste sentimento que tem como objetivo punir de forma exemplar a elite nacional da qual Eliana Tranchesi é um símbolo. "Querem dar exemplo, mas é demagógico e inaceitável do ponto de vista de um padrão sério de Justiça", diz ele.

Em 2005, quando a Operação Narciso revelou que produtos vendidos na Daslu tinham o preço subfaturado para reduzir a incidência do imposto de importação, Eliana estava tão convencida de que provaria sua inocência que recusou o conselho do advogado Antônio Mariz de Oliveira de pagar a diferença à Receita Federal para tentar abreviar o caso. Para ela, isso seria reconhecer um crime que ela não cometera e, por isso, acabou mudando de advogado. Segundo a Polícia Federal, alguns vestidos eram declarados por R$ 30 e, depois de importados pelas tradings cujos donos também foram condenados, vendidos por R$ 5 mil na Daslu.

i104508.jpgi104511.jpg

Na época, Eliana não dormiu na prisão, mas o caso mudou radicalmente sua vida. Um ano depois, por insistência de seu ex-marido, o cardiologista Bernardino Tranchesi, ela se submeteu a um check-up e os exames detectaram um câncer no pulmão. Ela tinha parado de fumar havia 15 anos e seus riscos de desenvolver a doença eram iguais aos de quem nunca fumou. A empresária foi operada e passou por sessões de quimioterapia até o início de 2007.

i104509.jpg

i104510.jpg

DESABAFO Eliana escreveu uma carta na qual diz não ver sentido em estar na cadeia, pois não representa perigo para a sociedade. Sua advogada, Joyce Roysen, considerou a prisão "cruel"

Ao mesmo tempo que se tratava, decidiu profissionalizar a gestão da Daslu. Ouviu sugestões de várias empresas de consultoria e contratou uma equipe que reformulou toda a parte financeira e administrativa. Chegou a demitir 500 pessoas. A candidatos a executivos da Daslu, Eliana garantia a transparência e a legalidade da empresa. "Até a moça do cafezinho está totalmente registrada", dizia. Assim, mesmo com a concorrência ampliada pelo surgimento de novos polos de comércio de produtos de luxo, a Daslu prosperou. Novos executivos e mais 200 funcionários foram contratados. A loja inaugurou uma filial no sofisticado shopping Cidade Jardim, em São Paulo, e planeja abrir outra em Brasília.

Acrescida de juros e correção monetária, a multa dada pelos fiscos federal e estadual soma R$ 1 bilhão, de acordo com o procurador do caso. Eliana negociou o parcelamento da dívida e, segundo sua advogada, os compromissos estão em dia. Foi por isso que, na sua equipe, ninguém entendeu a decretação da prisão. "Obviamente estávamos aguardando uma resposta da juíza", diz Luciana Tranchesi, filha de Eliana. "Mas a minha mãe não esperava ser presa. A decisão saiu na calada da noite e ela foi levada da casa dela às 6 horas da manhã", diz.

Horas depois da prisão, a empresária divulgou uma carta por intermédio de sua advogada, Joyce Roysen. "Não vejo sentido em estar presa novamente. Não represento perigo para a sociedade", escreveu. "Esse processo começou há quase três anos. Minha vida foi revirada. Fui presa por um crime tributário cujas multas já haviam sido lavradas e estavam sendo pagas." No texto, ela diz também que seu coração está com os três filhos, em quem pensa o tempo todo, e transmite confiança à equipe de trabalho para tocar os negócios. "Falei com ela horas depois da prisão", contou Luciana à ISTOÉ. "Ela está bem, tranquila. Minha mãe tem muita fé."

i104512.jpg

ACUSAÇÃO Para o promotor Matheus Baraldi, a sentença mostra que rico também integra organização criminosa. "E não só desgraçado com fuzil na mão"

Com a pena contestada por juristas, a prisão de Eliana foi vista como exagerada também pelos médicos. Em fevereiro, ela descobriu que o câncer voltou, com o surgimento de um tumor na base da coluna vertebral, na região lombosacra.

Segundo seu oncologista, Sergio Simon, Eliana foi submetida à terceira dose de quimioterapia no sábado 21 e, nesta fase do tratamento, necessita de cuidados médicos diários, para receber medicação na veia e fazer exames de sangue. Uma nova sessão de quimioterapia está programada para daqui a duas semanas.

A prisão, de acordo com Simon, não é um local adequado para quem está em tratamento por ampliar o risco de infecção generalizada. Eliana precisa de atenção médica continuada. "Além disso, a situação de grande stress a que ela está submetida pode influenciar bastante as respostas do organismo e sua recuperação porque a quimioterapia diminui a imunidade", disse Simon à ISTOÉ.

i104513.jpg

A necessidade de cuidado médico especializado fundamenta o pedido de habeas-corpus, concedido às 17h30 da sexta-feira 27, que a advogada Joyce protocolou no Tribunal Regional Federal. "A prisão é ilegal, desnecessária e cruel", argumenta Joyce. Os juristas apontam ainda que a sentença proferida por Maria Isabel desconsiderou decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) segundo a qual os condenados têm o direito de recorrer em liberdade até não haver mais possibilidade de recurso. E o caso de Eliana mal começou a caminhar pelos diversos estágios da Justiça.

Na sentença de 475 páginas, a juíza diz que os crimes são de extrema gravidade. "Eles associaram-se de forma constante, perene, articulada com sofisticada hierarquia estrutural para a prática de um esquema criminoso e bilionário, com divisão clara de atribuições no âmbito da organização criminosa, cujo objetivo era viabilizar um sistema fraudulento de importações", escreveu Maria Isabel, que não ignora a decisão do STF.

Seu principal argumento para a decretação da prisão é que o esquema teria sido mantido mesmo depois da Operação Narciso. A única diferença é que, em vez de a carga chegar pelo aeroporto de Guarulhos, desembarcava no porto de Itajaí, em Santa Catarina. O fato levou o irmão de Eliana, Antônio Piva de Albuquerque, de volta à cadeia por alguns dias em 2006. Para a juíza Maria Isabel, a conduta de Eliana e do irmão foi "intolerante e inescrupulosa". A participação da empresária nessa segunda ação é contestada pela advogada Joyce.

ALTIVEZ A sede da Daslu e Eliana e as filhas, Luciana e Marcela: "Minha mãe não esperava ser presa", disse Luciana. "Mas ela está tranquila, bem. Ela tem muita fé"

i104514.jpg

"O episódio de Itajaí não era caso de subfaturamento e não caracteriza reiteração", diz. "Houve uma falha na documentação de um lote de R$ 3 milhões num total de R$ 78 milhões importados por outra trading que não está no processo. A juíza usou isso para criar um novo fato que justificasse o pedido de prisão", diz.

Para o jurista Hélio Bicudo, na raiz da questão está o comportamento dos atuais juízes federais. Segundo ele, o governo – e não apenas os tribunais – é responsável pela ascensão profissional dos magistrados. "Se quiser fazer carreira com mais rapidez, o juiz terá de olhar o que está interessando mais a quem está no poder: maior arrecadação? Maior punição dos crimes tributários? Aplicação da lei de anistia aos que torturaram e mataram durante a ditadura?", diz o advogado. "Para não perder receitas, o governo imprime penas cada vez maiores a sonegadores", reforça o jurista Ives Gandra Martins. "Esses juízes estão pensando no acesso à carreira que lhes é dado se eles assinarem suas decisões de acordo com os interesses do Estado", critica Bicudo.

É justamente por isso que os brasileiros que desejam o fim da impunidade devem questionar a lógica pouco madura de que pena exemplar é a que mostra a musculatura da Justiça. Afinal, para que um exemplo seja eficiente ele precisa ser, antes de qualquer coisa, respeitado pela sua justeza, seu bom senso. As condenações ao exagero da sentença e a decretação da prisão da proprietária da Daslu, que não oferecia risco ao andamento do processo e está sob tratamento de uma metástase, podem, ao contrário, comprometer o princípio de que todos são iguais perante a lei. No caso de Eliana, se fosse condenada por crime hediondo, a pena teria sido menor.