É final da madrugada em Heliópolis, maior favela da capital paulista. Estampidos de tiros quebram o silêncio da noite. Dos 120 mil habitantes – espalhados por um milhão de metros quadrados – poucos se animam a pôr os pés fora de casa. A resistência dos moradores se justifica. Afinal, quem já viveu sob o pavor do toque de recolher, imposto pelos traficantes, sabe o que acontece com quem desrespeita as ordens do narcotráfico. O dia amanhece sob chuva. Na esquina das ruas 28 de Outubro com 27 de Setembro, a água da enxurrada muda de cor. Um rio de sangue corre pelo asfalto. Aos berros, Alice Torazzi, 60 anos, de joelhos e com um corpo agonizando em seus braços, suplica ajuda para o filho. Diante dela, outros quatro mortos a tiros. Pessoas se aglomeram. Um senhor de meia-idade aproxima-se. Alguém grita: “Sai daí.” A ordem parece não incomodar o morador, que se aproxima mais. Ouve-se outro grito, mais enfático. “Tira esse senhor”, adverte outro. “Corta, corta, vamos parar a filmagem”, decreta Valdimir Modesto, 36 anos, diretor cinematográfico da Associação Cultural e Artística de Heliópolis e Sacomã (ACAHS).

A cena, comum na periferia, confundiu o senhor desavisado que atrapalhou a filmagem. Ela faz parte do filme Excluído da sociedade, que começou a ser gravado este mês na favela, que conta a vida de Pilão, um menino que em busca de reconhecimento, poder e dinheiro fácil entra para o mundo do crime. O diferencial do longa é a equipe e o elenco. Todos os participantes são moradores de Heliópolis e trabalham sem receber nada. O filme faz parte da fórmula que o Cine Favela, projeto de inclusão social por meio do cinema, encontrou para frear a proliferação de Pilões. “A idéia é suprir a deficiência que o Estado tem de atingir essa camada da sociedade com diversão, educação e arte”, explica Modesto.

Criado há pouco mais de um ano, o Cine Favela ajuda a disseminar cultura entre os moradores, que assistem a filmes nacionais e fazem suas próprias produções. Os temas nascem do cotidiano deste público. Em 2003, os moradores produziram o filme Uma gota de sangue, que retrata a precariedade do sistema de saúde da região. Com estréia no Cine Sesc, em São Paulo, a obra reuniu mais de duas mil pessoas na única praça da favela. Em Excluído da sociedade, o roteirista Willian Novaes, 24 anos, mostra que é tênue a linha entre o imaginário do cinema e a vida real. “Nada se difere. É apenas uma transcrição do cotidiano dos atores/moradores para a grande tela”, afirma Novaes. Não é de estranhar a tentativa de um morador, desconhecido do elenco, de identificar na área de gravação as vítimas de uma chacina. Mas esse tipo de comportamento dos moradores dá veracidade ao filme. Outra vantagem é que ele é desenvolvido num cenário comum a todos. “Gravamos nos barracos dos moradores e pelas ruas e becos da favela”, diz Modesto.

O projeto tem alterado os finais de semana dos cerca de 50 moradores/atores. Além de decorar o texto e passar horas gravando, driblar a falta de dinheiro é um papel comum a todos. Cinthya Zampolo, 33 anos, que no filme interpreta a esposa de um político corrupto, é doceira na vida real e reserva parte da venda de suas trufas para as despesas do filme. O pão com manteiga que alimenta a trupe vem da padaria do Adão, que fica na esquina onde foi gravada a chacina. O café é fornecido pela dona-de-casa Geneci Ledo Detulio, 31 anos. O depósito de construção colabora com o cordão de isolamento. E por aí vai o exemplo de participação solidária. “De qualquer forma, estamos em busca de parceiros para o projeto”, avisa Modesto. Ele informa ainda que a fita, que estará disponível gratuitamente nas 15 locadoras da favela, não é nenhuma apologia ao crime. “Pilão terá um triste fim”, antecipa.

AÇÃO: O cotidiano na favela de Heliópolis, de 120 mil habitantes e um milhão de metros quadrados, serve de matéria-prima aos 50 moradores/atores que participam da produção do longa Excluído da sociedade

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