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SEM NADA
Iolanda (última à dir.) luta para receber
o FGTS de 15 anos de serviço

A vida diplomática é afamada pelo luxo e pela ostentação. Mas todo este glamour pode servir também para escamotear comezinhos pecados. Exploração de mão de obra, por exemplo. Eis aí uma típica mesquinharia que parece não combinar com os princípios da diplomacia. No entanto, é exatamente isso que vem ocorrendo por aqui. Várias embaixadas e consulados instalados no país têm negado a seus funcionários brasileiros direitos trabalhistas básicos. Empregados de representações estrangeiras são submetidos a situações constrangedoras, que, não raro, deságuam no assédio moral, sexual e até mesmo em regimes que poderiam ser considerados análogos à escravidão. Os casos de processos trabalhistas contra embaixadas e consulados estrangeiros no Brasil acumulam-se na Justiça há anos. A estimativa é de que cerca de 1,5 mil deles estejam em tramitação nesse momento.

A empregada doméstica Iolanda Ramos Fechio é uma dessas trabalhadoras que buscam no Judiciário os direitos que lhe foram negados pela embaixada da Arábia Saudita. Por 15 anos ela trabalhou na sede da representação saudita em Brasília e, após ser demitida há dois meses, descobriu que nunca teve o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) depositado por seu empregador. “Me deixaram sem nada”, diz a doméstica, que foi substituída por uma imigrante filipina trazida pelo embaixador Mohamad Amin Ali. Iolanda afirma que ainda foi obrigada a abrir mão do aviso prévio e da multa de 40%. “Ameaçaram demitir meu marido que trabalha lá também”, conta.

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A cozinheira Aparecida Barnabé de Souza, que serviu à embaixada do Canadá por 13 anos, é outro caso sério. Em 2008, ela se licenciou para tratar de problemas na coluna causados por seu trabalho. Para continuar recebendo o salário, ela repassava à conta da embaixada o auxílio-doença do INSS. “Nunca vi isso na minha vida”, diz Flávia de Souza, filha de Aparecida. Ela afirma que, depois de um ano, a mãe parou de receber o salário sem nenhuma explicação. “Desde então, a embaixada tem pressionado para fazer um acordo sobre a demissão dela.”

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TRIBUNAL
Funcionários de embaixadas e consulados que
buscam a Justiça para ter seus direitos trabalhistas respeitados

Reclamações trabalhistas como essas são cada vez mais comuns. O aperto fiscal de muitos países fez com que representações diplomáticas acabassem sendo obrigadas a reduzir gastos. Muitas estão aproveitando a imunidade diplomática a que têm direito para desrespeitar as complexas leis trabalhistas brasileiras. Para completar o quadro, o Itamaraty prefere não atuar de forma mais incisiva para evitar constrangimentos. A chancelaria brasileira apenas orienta as embaixadas a “observarem as leis trabalhistas do País e os trabalhadores a procurarem a Justiça”, informa a assessoria de imprensa do ministério. “Essas embaixadas querem se livrar do problema, não estão preocupadas em cumprir a lei”, diz o presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Embaixadas, Consulados, Organismos Internacionais (Sindnações), Raimundo de Oliveira.

O motorista Odaízio da Silva Araújo, que trabalhou 22 anos para a embaixada da Malásia e foi demitido após um diagnóstico de Doença de Parkinson, é outro em busca de reparação. Ele aguarda uma indenização de R$ 800 mil. “Queria pelo menos uma parte desse dinheiro para poder fazer uma cirurgia”, queixa-se. A 5ª Vara do Trabalho de Brasília pediu a penhora dos bens da embaixada, mas o Tribunal Superior do Trabalho suspendeu a execução.

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Alguns casos se arrastam há décadas, como o de Reginaldo Lobão, que trabalhou na embaixada dos Estados Unidos entre 1964 e 1987. Condecorado como funcionário exemplar, Lobão já recorreu até ao Congresso americano para reaver o FGTS relativo aos dez primeiros anos trabalhados. Aos 74 anos, vive com cerca de R$ 500 por mês, tem diabetes e câncer no intestino. “Estão esperando eu morrer para não precisar pagar nada”, lamenta. O motorista Afonso Leite, que serviu à embaixada de Camarões até 2006, também não consegue receber R$ 158 mil relativos aos encargos sociais de seis dos nove anos de trabalho. “Só assinaram minha carteira em 2003 e aí disseram para eu esquecer os anos anteriores”, diz.

A mesma imunidade diplomática também tem ajudado embaixadores e cônsules a se livrar de acusações ainda mais graves. Recentemente, um embaixador africano conseguiu liminar impedindo o Sindnações de denunciar um caso de assédio sexual contra uma secretária. “Se falarmos do caso, temos que pagar uma multa alta”, lamenta Oliveira.
Nenhuma das embaixadas citadas nessa reportagem quis se pronunciar sobre os processos.