Os passos são largos e decididos. A fisioterapeuta Alda Paiva de Souza, 36 anos, pisa no chão batido, cheio de pedra e poeira, visivelmente feliz. ?Sei que vou receber as respostas do que preciso durante ou depois do caminho.? Ela é apenas uma entre os 2.200 andarilhos que já atravessaram os árduos 415 quilômetros da trilha que liga a pequena Tambaú, no interior de São Paulo, ao santuário religioso de Aparecida, também em São Paulo, embora boa parte do itinerário seja feito dentro de Minas Gerais (confira o mapa). Batizado, com propriedade, de o Caminho da Fé, o percurso começa a se notabilizar como uma versão nacional, e ainda mais íngreme, do célebre Caminho de Santiago de Compostela, trajeto de peregrinos de 700 quilômetros que vai da fronteira da França até Santiago de Compostela, na Espanha, e foi tema do best-seller O diário de um mago, de Paulo Coelho. Alda ? que já foi a Santiago ? tinha fortes motivos para seguir em frente, superando a exaustão que a levou a passar mal, por ficar muitas horas sem comer. Cumpria a promessa feita a Nossa Senhora Aparecida, depois de se reabilitar de uma doença grave, descoberta em 1996. Hoje tem uma vida normal. O agradecimento fez com que no seu aniversário, na terça-feira, 14 de setembro, estivesse com o pé na estrada. Para acompanhá-la, dois cajados de alumínio com regulagem de altura que funcionavam também como varal, um canivete, um cronômetro e uma medalha de ouro do Divino Espírito Santo presa a uma corrente que herdou da mãe, falecida. E um celular, para dar notícias para o pai. Chegou a Aparecida em nove dias, saindo de Águas da Prata, e entrou na enorme Basílica emocionada. Agarrou-se ao terço e rezou. Milagreiro ? A aventura religiosa de Alda vem sendo repetida cada vez com mais frequência e seu peso espiritual pode ser explicado por seu ponto de origem, Tambaú. Foi na cidade em que viveu o padre mineiro Donizete, falecido em 1961 e famoso, a partir da década de 50, pelo alcance de sua bênção e pelos feitos de milagreiro. Mas a longa trilha não é restrita aos religiosos. Há belas paisagens, cachoeiras e cenas tipicamente rurais, com rebanhos de gado congestionando a estrada, cachorros vira-lata latindo para proteger pequenas propriedades. A extensão do caminho corta a serra da Mantiqueira entre montanhas que atingem 1.550 metros de altura e pelo percurso, encontram-se peregrinos encostados nas árvores, aliviando o stress muscular. Há gente com as pernas já trêmulas, furando enormes bolhas nos pés com agulha e linha ? a linha funciona como dreno para a água ? e improvisando curativos. Não se deve, porém, pensar que só há sofrimento. Na pequena Crisólia, município localizado bem no meio do trajeto, há o Bar da Zetti, retiro certo para quem quer descansar, comer e, melhor que tudo, degustar uma cerveja gelada. Dona Zetti é uma pioneira. Em 16 de fevereiro do ano passado, cinco dias após a inauguração oficial do caminho, ela instalou seu bar. A criação do caminho, aliás, é obra do empresário da região Almiro Grings, um velho amante de trilhas, religiosas ou não, que desta vez pensou em incrementar o turismo. O sucesso de público do percurso, e consequentemente do bar, é medido pelas mais de mil assinaturas no livro de visitas mantidas por dona Zetti. Há assinaturas de pessoas de todo o mundo. ?Tem uns que chegam aqui bem acabadinhos, frouxinhos e comem o que tiver de comida, coitadinhos?, diz ela, com seu sotaque mineiro, que se confunde com o italiano, espanhol, francês e alemão de seus clientes. A dona do bar é uma espécie de guardiã das histórias do lugar. Gosta de contar, por exemplo que um homem passou pelo bar carregando uma imagem de Nossa Senhora de 14 quilos. A explicação era que a graça alcançada ?tinha um peso muito maior?. Ao contrário do peregrino, o gerente de vendas José Antônio Pereira, 55 anos, foi se livrando do peso doando parte de seus suprimentos, inclusive um pote de geléia de mocotó. João Primo Bikes em movimento: o casal Marcelo e Maristela pedala sem se preocupar com assuntos religiosos Bolhas ? Pereira fez a trilha ao lado do consultor de informática Katsumi Nakasima, 53 anos, que conheceu na trilha. Ambos compartilhavam, além do bom papo, bolhas e unhas dos pés soltas. A tática de Nakasima era envolver os ferimentos com absorventes femininos, mais macios que os curativos comuns. Se os dois novos amigos afirmavam reencontrar a auto-estima perdida pelos anos, outro cinquentão, Alberto Tiago, 55 anos, encontrou literalmente Deus. Comissário de bordo e sindicalista aposentado, sempre foi ateu-marxista e materialista, segundo suas palavras. Tiago em 2002 se submeteu a um transplante de fígado, depois de um diagnóstico de hepatite C. ?Antes, eu não acreditava em nada, achava mesmo a religião o ópio do povo, mas hoje vivo com o fígado de uma outra pessoa, e isso é um milagre.? A promessa de ir a Aparecida foi firmada ainda no hospital, e quando soube do Caminho da Fé resolveu ir a pé. ?A gente se surpreende com a própria capacidade de andar. A partir de certo momento se consegue controlar a dor e o cansaço.? A melhor surpresa, porém, veio com a reação sempre solidária dos habitantes do lugar. ?Eles me ofereciam água e comida e pediam que eu rezasse por eles quando chegasse em Aparecida.? Tiago viajou, por coincidência, ao lado de Almiro, criador do caminho, e de uma cantora local chamada Valgra Maria. Foi com eles que bebeu sua primeira cerveja depois da cirurgia, numa pequena cidade chamada Tocos do Mogi. Nem nos últimos réveillons tinha bebido. ?No caminho, nós choramos, nos abrimos. Na volta ficamos chatos, só falamos disso?, reconhece Tiago. João Primo O peregrino Katsumi Nakasima cobriu os pés com absorventes femininos, usados como curativos. No trajeto, fez um amigo e pensou muito na vida, andando com calma. ?Não estou num rali, quero aproveitar o caminho? Peso inútil ? Pouco interessados nos eventuais eflúvios religiosos, Marcelo Perri e Maristela ? ele, engenheiro mecânico, ela, estudante ? encararam o Caminho da Fé dispostos a colocar as rodas de suas bikes para girar. Na primeira cidade que chegaram, despacharam metade da bagagem de volta, eliminando o peso inútil de sacos de dormir e toalhas. Ficaram apenas os isolantes térmicos, poucas roupas, uma câmera fotográfica digital e um GPS (localizador por satélite). Sem o incômodo da bagagem, a garupa da bike de Marcelo foi usada para secar suas cuecas ao sol. Marcelo e Maristela confirmam a vocação democrática do caminho, que começa a receber mais estrutura. Em 2003, o presidente da Fundação Banco do Brasil, Jacques Penna, fez o trajeto. Entusiasmado, procurou Almiro e conseguiu vários benefícios para os peregrinos. Ao lado da Telemig (Telecomunicações de Minas Gerais), Penna obteve um investimento de R$ 140 mil. O dinheiro foi gasto na compra de um Chevrolet S10 4×4, destinado à manutenção da trilha e eventuais socorros, impressão de 5.000 guias turísticos, 100 mil folders, ambos em três idiomas ? português, inglês e espanhol ?, e mais 400 placas de sinalização. Nosso Santiago de Compostela caboclo é um caminho de futuro.