A balbúrdia causada pela retirada das farmácias do antiinflamatório Vioxx, até então um dos campeões de venda da indústria farmacêutica, pode levar as agências reguladoras do setor a aumentar o rigor com que aprovam a entrada de remédios no mercado. É nisso que acreditam alguns especialistas após mais uma semana em que o assunto esquentou o noticiário. Banido por decisão do fabricante, a Merck & Co., o medicamento sofreu mais um revés na quarta-feira 6. A imprensa americana revelou uma projeção de que 27.785 ataques cardíacos poderiam ter sido evitados caso a droga não tivesse sido consumida entre 1999 (quando foi lançada) e 2003. O trabalho foi feito por uma instituição privada a pedido do FDA, a agência que fiscaliza remédios nos EUA.

Embora assuste, o número não pode ser tomado ao pé da letra. Primeiro porque nem mesmo o FDA divulgou a projeção em seu site – uma cópia teria vazado para a imprensa. Depois porque o cálculo foi feito com base em uma pesquisa que teve a colaboração de um cientista que presta serviços a um laboratório concorrente. Outro problema é a forma como se chegou à estimativa. “Discordamos desse estudo. A análise levou em consideração apenas cadastros de pacientes. Essa metodologia não pode ser usada para avaliar efeitos colaterais”, critica João Sanches, diretor de comunicação da Merck Sharp & Dohme, a subsidiária brasileira. O médico Sérgio Graff, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia, também recomenda cautela. “Não sabemos até que ponto os interesses mercadológicos interferem nessa questão”, afirma.

Com interferência ou não, o caso Vioxx chamou a atenção dos cientistas para o processo de aprovação de remédios. A Agência Européia de Medicamentos informou que pretende reavaliar drogas similares ao produto banido. O medicamento pertence à classe dos inibidores de uma enzima chamada COX2. Assim como ele, os antiinflamatórios Celebra (Pfizer), Movatec (Boehringer Ingelheim) e Bextra (também da Pfizer) atuam sobre essa substância. Pesquisas divulgadas há cinco anos pela Universidade da Pensilvânia (EUA), quando o Vioxx e o Celebra chegavam ao mercado, sugeriam que o mecanismo desses remédios combatia a inflamação, mas bloqueava elementos capazes de prevenir problemas cardíacos. “As moléculas têm características diferentes, apesar de pertencerem à mesma classe”, rebate João Fittipaldi, diretor-médico da Pfizer. O laboratório Boheringer é outro que assegura a segurança de seu produto, alegando que até o momento não há evidências de que a droga aumente o risco de males cardíacos. Foi essa ameaça que levou a Merck a retirar o Vioxx. Estudo da empresa mostrou um risco para eventos cardiovasculares após 18 meses de tratamento.

VigiIância – O FDA não passou incólume pelo episódio. Um diretor da agência, Steven Galson, comentou que é cedo para dizer que tipo de mudança ocorrerá na entidade. Porém, declarou que haverá um interesse maior em estudos de larga duração. “Devem ser feitas mais pesquisas que avaliem o efeito de um remédio a longo prazo”, defende João Massud Filho, da Universidade Federal de São Paulo. O toxicologista Graff acrescenta que as diferenças na população podem pesar. “É possível que dentro de um grupo, um composto seja metabolizado de modo distinto. Isso só pode ser detectado com um bom trabalho de farmacovigilância”, diz. Farmacovigilância é o sistema de notificação de reações adversas causadas por remédios. Ele sustenta que esse trabalho tem de envolver a educação de profissionais de saúde (que devem saber o que é preciso notificar) e de consumidores (que não podem se calar diante de efeitos inesperados).

De acordo com a indústria, os cuidados com a segurança dos remédios já são bastante rigorosos. “As empresas investem em estudos antes da aprovação e também depois que o produto está no mercado”, explica Gabriel Tannus, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa. Os laboratórios estão procurando diminuir o tempo que se leva para obter uma droga pronta para ser disponibilizada na farmácia. Atualmente, esse período gira em torno de dez anos. A meta das companhias é reduzir esse prazo pela metade. “Acelerar o processo, no entanto, envolve critérios de segurança rígidos”, completa Tannus. Para Sanches, da Merck, o problema será arcar com estudos com uma abrangência maior de pacientes. “Na fase de registro, são avaliados de três a cinco mil pessoas. Envolver muito mais gente pode encarecer o medicamento”, aponta. Na semana passada, a subsidiária brasileira da Merck anunciou o reembolso de pacientes que compraram o remédio e interromperam o tratamento assim que a retirada foi comunicada. Quem tiver o produto deve procurar a farmácia onde ele foi vendido e solicitar a devolução do dinheiro. A medida, correta, foi uma decisão da direção nacional.