Antes de virar a Gal Costa, musa
de todas as estações, a cantora
baiana cogitou ser apenas a Maria da Graça de nascença. No que foi desaconselhada pelo produtor Guilherme Araújo: “Maria da Graça é nome de cantora de fado.” O que dizer então de Maria Burgos, alcunha com que costumava ser identificada em cartões de embarque e fichas de check-in? É que, além de Costa, Gal é Burgos por parte do pai. Para evitar mal-entendidos, ela resolveu oficializar o apelido de infância como primeiro nome e colocar o Burgos antes de Costa. “Agora meu nome é Gal”, diz às gargalhadas, numa sala do casarão de dois andares onde funciona o estúdio da nova gravadora, a Trama, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Seu sorriso, a marca registrada, tem motivos para se mostrar como meia-lua, sempre demarcada pelo generoso batom vermelho. Prestes a completar 60 anos, no dia 26, a cantora resolveu presentear-se – e a seus fãs – com um ótimo trabalho, Hoje, inteiramente com músicas de jovens compositores, exceção feita às inéditas de Chico Buarque e Caetano Veloso, Embebedado e Luto, respectivamente. “Estava devendo esse disco. É um trabalho que eu tinha que fazer, mas só faço as coisas quando chega o momento.”

E o momento chegou quando sua gravadora anterior, a Indie Records, lhe propôs fazer um Todas as coisas e eu Vol II, só com clássicos nacionais. “Disse: não faço.” Nos Estados Unidos, o convite do pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, ex-marido de Elis Regina, para que fizessem um trabalho conjunto acabou resultando no contrato com a Trama para dois projetos – o Hoje, que agora chega às lojas, e um futuro disco com repertório de Chet Baker. “Eu poderia sentar no trono da grande cantora de clássicos e ficar ali. Mas não quero e nunca quis”, conta Gal. “Quando as pessoas dizem que sou uma cantora clássica, a grande dama, eu digo: não, eu sou mil. Em vários momentos da minha carreira eu fiz isso, como em Gal Tropical ou O sorriso do gato de Alice, momentos de quebras e mudanças.”

Assumindo-se meio cigana, depois de sete anos vivendo em Salvador, Gal busca um cantinho na capital paulistana, onde morou por cinco anos, no início da carreira. “Na verdade, eu comecei mesmo foi em São Paulo. Depois do show Divino, maravilhoso, no Teatro de Arena, eu fui convidada para a Sucata e, como o espetáculo estourou, acabei ficando e morando no Rio de Janeiro.” Era o ano de 1966. Esse involuntário mergulho no passado parece ter feito bem à cantora, que se mostra rejuvenescida. E não apenas devido ao repertório assinado por nomes como o pernambucano Junio Barreto, os baianos Tito Bahiense e Moisés Santana e o paulista Nuno Ramos, mais conhecido como artista plástico, autor do samba de estirpe Pra que cantar, no qual a cantora mostra por que é uma das melhores em atividade. Senão a melhor. “Nesse disco, eu acho que estou cantando diferente da maneira que cantei nos discos anteriores, de clássicos”, conta Gal.

O produtor Cesar Camargo Mariano, que já trabalhou com a cantora em Baby Gal, de 1983, e a coloca entre os quatro grandes ícones da música brasileira – as outras seriam Angela Maria, Elis Regina e Maria Bethânia –, também concorda. “É bonito quando a Gal canta muito agudo, mas o rendimento dela é melhor nos médios. Nas gravações, ela foi se dando, parecia que estava descobrindo coisas novas. O disco ficou fresquinho, com a Gal cantando como se fosse uma árvore cheia de folhinhas novas.” Mariano, que cuida também dos teclados e da percussão eletrônica, quis transportar para o disco um clima mais calmo e jazzy – não “jazzista”. O time de jovens músicos, todos com pouco mais de 20 anos, contribui para o frescor final, sem falar que as gravações eram feitas “ao vivo”, com a banda reunida. “Todo o clima, o jeito de gravar, de escolher as músicas, tudo isso faz diferença. Na música do Chico, por exemplo, o Zé Miguel Wisnik terminou a letra no estúdio, vendo-a cantando.”

Emoção – Outro momento de emoção se deu na gravação de Luto, de Caetano, um samba-canção que já nasceu “clássico”. Gal não conseguia passar da primeira estrofe da letra – “Ai, meu carnaval…/ Que é que cê fez./ Homem ruim?” Se debulhava em lágrimas. Foi assim uma, duas, três vezes. Mariano lembra que tentou gravar assim mesmo, respeitando o sentimento dela. Já havia passado por isso quando Elis Regina gravou Atrás da porta, de Chico e Francis Hime, e todo mundo conhece o resultado. Mas Gal parou a gravação no meio. “Ela pediu cinco minutos para se controlar, disse que não conseguia cantar chorando, que não era a Elis.” Passados 40 minutos, voltou ao estúdio e gravou direto, num take só. É ouvir para crer.

Mas a excelência do disco não se limita aos pesos pesados. Gal deixa sua marca definitiva em Nada a ver, de Hilton Raw, Lenora de Barros e Marcos Augusto, que compara o amor a um precipício, e na faixa-título, assinada por Moreno Veloso, ambas embaladas por um piano jazzy e intervenções eletrônicas bem contemporâneas. As músicas de Junio Barreto e Tito Bahiense foram eleitas por lembrar as de Gilberto Gil e Jorge Benjor gravadas por ela no passado. “Eles fatalmente sofreram influência do tropicalismo, de João Bosco, de Milton Nascimento. Assim como eu fui influenciada pela bossa nova e o canto do João (Gilberto).” Na primeira garimpagem de compositores novos, reunidos pelo letrista Carlos Rennó – que lhe mostrou também três melodias do cantor congolês, Lokua Kanza, mais três pontos altos do disco – Gal chegou a quase 200 canções. Algumas que ficaram fora serão conhecidas no show que estréia em meados de outubro.

Ciente de que fez um grande trabalho, Gal inclui Hoje entre os momentos de ruptura de sua carreira. “Esse disco é uma sacudida mesmo. Ao contrário do que as pessoas pensam, eu não gosto de me acomodar. Gravei clássicos, rock, passei pelo tropicalismo, minha história está aí, todos conhecem. Mas tem hora que você precisa romper com tudo o que você é e já foi, para buscar elementos novos.” Para a cantora, esses momentos de ruptura não são pensados, mas quase físicos. “Isto é vital em mim, faz parte de minha personalidade, do meu coração, da minha alma.” Terminada a entrevista, um inusitado encontro ilustra a fase vivida pela baiana. Um rapaz de cabelos longos e braços tatuados se apresenta e pede para tirar uma foto ao lado da diva da MPB. Seu nome? Andreas Kisser, guitarrista do Sepultura, que estava na Trama gravando o novo CD. Diante da sugestão em dividir o palco com a cantora, respondeu: “Vamos nessa.” Se o encontro porventura acontecer, depois de Legal, Fatal, Tropical e Plural, quem sabe vem aí uma Gal Metal.