Está certo que ele estava em início de carreira, mas você teria algum dia esnobado Chico Buarque? Pois bem, a cantora Elis Regina esnobou, e ela também estava nos anos 60 apenas começando a sua trajetória artística. Chico foi à sua casa com um lote de músicas inéditas. Tímido, ficou olhando para o chão. Elis não lhe deu a menor bola apesar de saber de sua timidez e Chico ficou mais desconcertado ainda. Os dois eram jovens, os dois ainda estavam em busca de fama, mas a personalidade de Elis Regina se sobrepôs. Esse episódio mostra quem foi a pessoa Elis: uma mulher de temperamento extremamente forte a ponto de ser apelidada de “Pimentinha”.

Outro caso, dessa vez envolvendo Gilberto Gil, mostra agora quem foi a Elis Regina cantora. Ela estava selecionando o repertório para um novo disco e telefonou para Gil pedindo-lhe uma canção inédita. “Não tenho não, Elis. Mas eu passo aí amanhã, até lá eu devo ter”, respondeu ele com o sossego dos baianos e a certeza dos compositores talentosos. Foi assim que Gil a presenteou com a música Ladeira da preguiça, que teve sucesso imediato. E aí está o traço da cantora Elis: canções nas quais ela colocava a sua garganta viravam ouro puro, sobretudo devido a sua perfeita afinação, à incansável respiração e à inimitá vel divisão rítmica de sílabas e versos – antes de Elis Regina,só Dalva de Oliveira; depois de Elis Regina, ninguém. O temperamento e a voz fizeram dela um mito, naturalmente esquecido do grande público pelos 25 anos que distanciam a sua morte dos dias de hoje. Mas o mito retorna agora, mais vivo que nunca, numa série de lançamentos e relançamentos que a homenageiam postumamente.

Afinação: Elis no show O trem azul, o último de sua carreira
(à esq.), e em um momento de calma interior (no alto, à esq.)

Uma caixa com três DVDs, chamada Elis, chega às lojas esta semana pelo selo EMI. Os DVDs são Na batucada da vida, Doce de pimenta e Falso brilhante. Está saindo também a versão remasterizada (5.1 surround) do CD Falso brilhante (Trama), um dos principais trabalhos da gaúcha Elis, lançado originalmente em 1976 e gravado em apenas dois dias nos intervalos do show homônimo em São Paulo. Sucesso absoluto de público, esse espetáculo marcou, no entanto, um momento duro na vida da cantora. Dias antes da estréia, ela quase perdeu a voz e recorreu às pressas a um curso de psicotransoterapia com o objetivo de liberar para o plano da consciência algumas emoções escondidas. Elis dizia que estava ficando travada, sentia dores horríveis quando cantava, achava que sua voz começava a desaparecer e que desaprendera a cantar – na verdade, ela desaprendeu tanto e sua voz desapareceu tanto que o show ficou quase dois anos em cartaz e com a platéia lotada. De volta às homenagens aos 25 anos de sua morte, já se cravou o mês de março para o lançamento da nova edição revista do livro Furacão Elis (Ediouro), a melhor biografia da “Pimentinha”, escrita pela jornalista Regina Echeverria. Aliás, foi justamente ela, Regina Echeverria, quem certa vez testemunhou o porquê da exatidão do apelido e o porquê do brilho e prestígio da cantora: “Eu estava na platéia assistindo a um ensaio e repentinamente Elis interrompeu e deu uma violenta bronca em todos os músicos. Naquele momento eu percebi o tamanho de sua musicalidade. E a força de seu temperamento.” Terminada a bronca, com a maior tranqüilidade Elis olhou para Regina e perguntou: “Vamos jantar?”

Essas oscilações, ainda que em busca do perfeccionismo no campo profissional e de superação de um sentimento crônico de abandono no campo das relações pessoais, faziam de Elis Regina uma mulher atirada, ousada, inquieta, brigona, sensível, solidária, irreverente, boa amiga e, quase sempre, infeliz. No dia 19 de janeiro de 1982, no auge da fama e recém-separada de seu marido, o pianista e compositor César Camargo Mariano, ela estava em seu apartamento em São Paulo (quinto andar de um prédio da elegante rua Melo Alves, nos Jardins). Passara a noite em claro. E era manhã mais que clara quando decidiu deitar-se e dormir. Antes, tomou um coquetel fatal de uísque com cocaína e sonífero. Às nove e meia da manhã, ainda teve forças e pediu socorro pelo telefone. Em vão. Elis Regina morrera. Tinha 36 anos, uma legião de fãs e 23 ml de cocaína a cada 100 ml de sua urina.