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TEMPO
Após quatro anos, Natascha decidiu contar seu drama em livro

Sequestrada aos dez anos quando caminhava sozinha para a escola por um psicopata que a manteve presa por oito anos no porão de sua casa, em Viena, na Áustria, Natascha Kampusch, 22 anos, finalmente revela ao mundo detalhes desconcertantes de sua história. Há quatro anos, ela conseguiu fugir de seu algoz, o engenheiro Wolfgang Priklopil, que se suicidou aos 44 anos, logo após sua fuga. Na semana passada lançou, na Áustria, a autobiografia “3.096 Dias” na qual conta como foram os anos de cativeiro e fala de sua relação com Priklopil. Durante a clausura, ela se relacionou apenas com seu sequestrador e tentou diversas vezes o suicídio. Natascha apanhou (ela conta que teve épocas que sofria agressões cerca de 200 vezes por semana, conforme anotou em um caderno que guarda até hoje), foi escravizada (ele a obrigava a fazer serviços domésticos) e era forçada a chamar seu algoz de “senhor”. Além das agressões físicas, sofreu forte pressão psicológica. Teve de escolher um novo nome (Bibiane), foi proibida de falar de sua família e não tinha permissão para chorar nem mesmo quando era golpeada nas costas por um pé de cabra.

Depois de viver tamanho trauma, por tanto tempo, a dúvida que fica é: será que um dia ela terá condições de levar uma vida normal? Desde que deixou o cativeiro, Natascha luta para suportar o seu passado e encarar o seu presente, mas ainda teme o futuro. É uma sobrevivente que tenta se readaptar a uma nova realidade. Tem dificuldades de se relacionar com a mãe, que estranha, e com o pai, com quem não fala há dois anos. Trabalhar, casar e formar família são verbos que a apavoram. Em entrevista recente, ela tremia toda vez que lhe questionavam sobre isso. “Antes de ter uma família, um filho, preciso descobrir quem eu sou”, disse. Ao jornal inglês “Daily Mail”, ela diz que não tem um emprego porque tem dificuldade de aceitar ordens. Durante o tempo que permaneceu no cativeiro, Natascha era chamada de “escrava”, tinha a cabeça raspada e era obrigada a trabalhar parcialmente nua. No porão onde passou boa parte de sua vida, ela ouvia, em último volume e constantemente, através de um autofalante, o imperativo “Obedeça! Obedeça!”

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A dificuldade de se libertar do passado é evidente. Recentemente, ela com­prou a casa e o carro de Priklopil. O ato revela o conflito que a consome. “Quando vejo o cativeiro, sinto náuseas”, diz ela. “Ao mesmo tempo, aquele lugar foi o meu lar, faz parte da minha história.” Além de tudo, Natascha ainda se sente culpada pela morte de seu sequestrador. “Eu perdi uma pessoa que, pela força das circunstâncias, era próxima de mim. Se eu não tivesse fugido, ele não teria se matado”, escreveu, deixando claro que sofre da famosa síndrome de Estocolmo, na qual o sequestrado se envolve com o algoz, a ponto de também nutrir bons sentimentos por ele.

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O sociólogo e psicanalista da Universidade de Brasília Antonio Flávio Testa pinta com tintas escuras o futuro de Natascha. Segundo ele, é muito difícil se recuperar de baques como esse. “Ela sofreu duros golpes”, diz ele. “Foi forçada a esquecer de quem era por duas vezes, ao ser sequestrada e ao fugir do sequestrador. Hoje, é um ser híbrido, tentando se redescobrir.” Sem entrar em detalhes, no livro, Natascha esclarece que não foi violentada sexualmente. Mas diz que houve sexo entre ela e Priklopil. Quando não há violência sexual, a pessoa tem mais chance de se envolver emocionalmente. Para Testa, ela terá dificuldades de casar e ter filhos. “Será sempre uma mulher difícil de ser compreendida, com grandes chances de cometer o suicídio.” Especialistas que acompanharam o caso de Natascha, no entanto, acreditam que ela tem se saído bem nos últimos anos. “A vida dela ficou em suspenso por oito anos, e é natural que demore a entrar nos eixos”, diz a psicóloga britânica Anuradha Sayal-Bennet. “Ela enfrentará muitos conflitos, mas é uma mulher de fibra.”

O livro é alinhavado por relatos angustiantes, como o do dia do sequestro. Natascha ia sozinha à escola pela primeira vez, pois havia conseguido permissão da mãe. Saiu sem se despedir dela porque estava chateada por causa de uma discussão na noite anterior e queria puni-la. No caminho, ao ver o seu sequestrador encostado numa vã, sentiu arrepios só de olhá-lo, mas ao mesmo tempo se encantou com os seus olhos azuis. Foi quando foi empurrada para dentro do carro e levada para o cativeiro. A primeira noite de Natascha no local onde passaria outros 3.095 dias foi um prenúncio da relação que se estabeleceria entre ela e seu carrasco. Antes de dormir, largada num quarto escuro, ela pediu para o sequestrador ler para ela uma história, assim como sua mãe fazia. “Também pedi um beijo de boa noite a ele. Tudo para preservar a minha ilusão de normalidade. E ele aceitou.” Anos depois, ela passou a dormir com Priklopil em seu quarto, no andar de cima da casa. Algemada à cama, não podia se mexer a noite inteira. E tinha de dormir de lado porque sempre estava com as costas machucadas.

Natascha diz que se manteve viva porque foi capaz de não odiar seu algoz por completo. Só assim conseguia vivenciar pequenas doses de felicidade. E, em determinadas circunstâncias, até sentir afeto por ele, como nas raras voltas de carro que dava em sua companhia e como no dia em que conseguiu convencê-lo a deixá-la tomar o seu primeiro banho de banheira, seis meses após seu sequestro. Até então, ela tomava banho numa pia. “Quando entrei na banheira, senti a água morna e fechei os meus olhos, fui capaz de sumir com tudo ao meu redor”, escreveu. “Minha mente me levou de volta para o banheiro da minha casa, para os braços da minha mãe, que me esperava sair do banho com uma toalha macia e preaquecida.” Ao fim do banho tão esperado, Natascha agradeceu Priklopil pelo “presente”. “Em situações em que a violência física e psicológica são constantes, elas se tornam normais”, comenta Testa. “Natascha era capaz de relevar tudo o que sofria, para ter momentos especiais, mesmo na companhia de seu algoz.” Que a resiliência de Natascha seja capaz de movê-la adiante novamente, desta vez para viver a sua liberdade por completo.