Produzir uma obra-prima demanda criatividade e, muitas vezes, o apoio de uma pessoa que concorda em ficar horas e horas em uma pose estática para ajudar o pintor a encontrar novos caminhos em seu processo criativo. Como dizia Oscar Wilde, nenhum grande artista enxerga as coisas como elas são na realidade.

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Aprender mais sobre as histórias das pinturas pode ajudar a apreciar obras sob um novo olhar. Portanto, para a coluna de hoje selecionei dez obras primas que foram produzidas a partir de pessoas comuns, praticamente desconhecidas, mas que eternizaram seus nomes com a ajuda dos mais famosos artistas do mundo:

1-“Monalisa”, de Leonardo da Vinci (1506) – O retrato mais famoso da história da arte demorou anos para ser produzido por Leonardo Da Vinci e, durante séculos, a identidade da mulher permaneceu um mistério. O retrato foi inspirado em Lisa Gherardini, segunda esposa do rico comerciante de seda e lã, Francesco del Giocondo. Daí, surgiu o apelido “La Gioconda”. Porém, com a ajuda da tecnologia, especialistas indicam grande semelhança facial entre a Mona Lisa e outras pinturas do mestre renascentista, como São João Batista. Com isso, alguns especialistas defende a tese de o rosto ter sido ajustado com traços de Leonardo Gian Giacomo Caprotti, também conhecido como “Salai”, que atuava como assistente e aprendiz de Leonardo da Vinci, além de ser seu amante. Para mim, independentemente da origem das inspirações, Leonardo da Vinci criou uma grande obra prima. O sorriso, o olhar, a suavidade da pele e as curvas do cabelo chamam a atenção dessa pintura repleta de técnicas para hipnotizar a atenção de quem a admira. A boca se inclina suavemente para cima, tornando a pintura ainda mais enigmática para despertar a curiosidade sobre o humor da musa e a intenção do artista. Seus olhos parecem seguir os espectadores por terem sido pintados no ângulo de 15 graus para criar uma expressão ambígua e instigante. Dizem que a obra como conhecemos hoje está inacabada porque Da Vinci morreu em 1519 antes de concluí-la. Certamente se tivesse vivido mais, o retrato teria novos ajustes. Recomendo ler duas colunas que fiz sobre Mona Lisa (do Museu do Louve) e a Mona Lisa Jovem (que faz parte do acervo do Museu do Prado).

2- “O Carteiro Roulin”, de Vincent van Gogh (1888) – Num dado momento da vida de Van Gogh, a pessoa mais importante para ele era o carteiro Joseph Roulin, que trazia as cartas de seu irmão Theo com notícias e, muitas vezes, com dinheiro para o sustento e para as tintas. O carteiro tornou-se uma figura tão representativa para Van Gogh que ele acabou pintando a família Roulin inteira, produzindo uma série de pinturas com Joseph, sua esposa Augustine e seus três filhos: Armand, Camille e Marcelle. Os retratos foram feitos em Arles, uma linda cidade francesa onde Van Gogh produziu algumas de suas obras mais bonitas, repletas de muitas camadas de tinta. Roulin, considerado “uma alma boa, um homem sábio e cheio de sentimentos”, acompanhou Van Gogh nos bons e nos momentos mais difíceis. Para a série, Van Gogh usou sua imaginação para chamar a atenção. Prova disso é que cada membro da família foi retratado com uma cor primária, contrastando com o fundo da pintura para intensificar o impacto das obras. Van Gogh era genial, mas apesar de ter produzido 879 quadros em menos de uma década, conseguiu vender apenas um em vida.

3-“Retrato de Adele Bloch-Bauer”, de Gustav Klimt (1907) – No auge de sua carreira, Gustav Klimt começou a produzir telas com folhas de ouro e pintou duas obras muito famosas: “O Beijo”  e “Retrato de Adele Bloch-Bauer I”. Adele era uma moça austríaca, judia e muito rica que colecionava arte com seu marido Ferdinand. Era praticamente uma pessoa desconhecida fora da Áustria, mas a pintura não ficou famosa apenas por ser da mesma época e por ter características semelhantes ao quadro do “O Beijo”. A pintura teve uma história controversa. Embora Adele tenha declarado em seu testamento que o quadro deveria ser doado para a Galeria Estatal Austríaca, seu cunhado ignorou o “pedido” e decidiu manter o retrato com a família. Em 1941, os nazistas roubaram a pintura e somente após a segunda guerra mundial ela foi resgatada para ser instalada na Österreichische Galerie Belvedere de Viena. Em 2006, a obra foi devolvida à família Bloch-Bauer e vendida logo na sequência por 135 milhões de dólares.

4- “Moça com um Brinco de Pérola”, de Johannes Vermeer (1665) – Essa obra é a Mona Lisa holandesa. A pintura mostra uma garota desconhecida, sem sobrancelhas, com expressão enigmática, olhos arregalados, turbante azul incomum, um enorme brinco e com roupas luxuosas, como se não pertencesse ao seu tempo. Seu turbante azul é exótico e o tecido amarelo de sua roupa é marcante, trazendo um ar de mistério para a imagem. Um pequeno grupo de historiadores diz que a mulher que inspirou o retrato é Maria Vermeer, a filha mais velha do pintor, mas a maioria dos especialistas concorda que a obra é, na verdade, um ‘tronie’, ou seja, um estudo de uma pessoa não identificada. Com uso de aparelhos de raio-x, os técnicos descobriram traços de cílios delicados e imperceptíveis a olho nu, além de evidências de uma cortina verde posicionada atrás da garota. Com o estudo, eles também puderam entender como Vermeer pintou a obra, as mudanças que fez e os pigmentos mais usados. O branco usado para pintar o brinco da moça veio do no Peak District (Inglaterra), o azul veio do Afeganistão, o vermelho veio dos cactos do México e a pérola retratada é um brilho de luz (não há gancho na orelha para pendurar o brinco e não existiam pérolas na época), semelhante a outros presentes em outras obras do pintor. Entre os ajustes, a orelha, o lenço e pescoço foram ajustados ao logo do processo de criação. Imagens por infravermelho mostram também que Vermeer começou o quadro com tons de marrom e preto.

5- “Mulher com Chapéu”, de Henri Matisse (1905) – Essa é uma das obras mais controversas e inovadoras do começo do século XX, junto com “A Alegria de Viver (também de Matisse) e “Les Demoiselles d’Avignon” (de Pablo Picasso). A pintura mostra uma mulher de chapéu colorido, eternizando a desconhecida Amélie, que era esposa do artista. Sua expressão é triste, enaltecida pelas cores azuladas do seu rosto. As cores escuras e frias transmitem dramaticidade, contrastando com a vivacidade do cabelo e de seu vestido. A pintura chamou a atenção assim que foi exposta no Salon d’Automne, no mesmo ano que foi criada a partir da técnica de aplicação de tinta em camadas, ensinada por Paul Gauguin. Foi criticada na época por ser diferente de outras obras e por ter flores com um formato ‘estranho’. A genialidade de não terem contorno definido assustou quem as viu pela primeira vez. Aliás, foi o próprio Gauguin que ajudou outro amigo a se soltar e a explorar cores e novas técnicas sem medo e sem restrições. Esse amigo era Vincent van Gogh. Amélie queria que Matisse abandonasse a vida de artista para ajudá-la na loja de chapéus. Para nossa sorte, Matisse rompeu com todas as convenções da época com essa obra e não abandonou sua paixão pela pintura. Acabou se separando da esposa, depois de décadas de relacionamento.

6- “American Gothic,” de Grant Wood (1930) – Essa obra é uma das mais famosas pinturas modernas americanas. Mostra um casal de fazendeiros com aparência sombria. A inspiração veio de uma dupla improvável: a irmã mais nova do artista e de um dentista. Em vez de procurar modelos, ele pediu a Nan Wood Graham e para o Dr. Byron McKeeby posarem para a pintura. A ideia inicial era reproduzir um pai com uma filha, mas o artista sempre destacou que a obra deve estar aberta para interpretações do público. Para ele, o que importava era o que os retratos revelavam sobre a vida americana. Para mim, é uma das obras assustadoras que já vi. Difícil esquecer a imagem desse quadro.

7 – “Two Tahitian Women on the Beach”, de Paul Gauguin (1899) – Gauguin foi ao Taiti para descobrir a pureza da vida polinésia e escapar da França moderna, mas acabou pintando a influência colonial e a melancolia das mulheres. Esse quadro é uma das obras produzidas naquele verão. Retrata duas mulheres taitianas desconhecidas, sentadas na areia, com as roupas coloridas, com cabelos negros amarrados e flores brancas. Certamente, a obra não retrata as mulheres exatamente como eram, pois Gauguin gostava de pintar com proporções distorcidas, rostos que podem se assemelhar a máscaras e cores separadas por contornos escuros. Além disso, era um pintor de contrates. Note que cada personagem tem uma característica diferente (uma está com o sarongue tradicional da região e a outra mostra a influência ocidental, uma parece desocupada e a outra preocupada com as tarefas diárias.

8 – “Retrato de Gertrude Stein”, de Pablo Picasso (1905-1906) – Ela era uma mulher que parecia semelhante a todas as outras de sua época e reunia em sua casa seu grupo de amigos para conversar. Todos eram como ela, jovens e desconhecidos. Mas com o passar dos anos, a Rue de Fleurus, 27, tornou-se o endereço mais importante para o universo artístico por reunir nomes como Pablo Picasso, Henri Matisse, Ernest Hemingway, Jean Cocteau, Apollinaire, Ezra Pound, James Joyce, Scott Fitzgerald, entre muitos outros. O local era uma residência de dois andares com um estúdio adjacente e que ficava perto do Jardim de Luxemburgo. Gertrude Stein tornou-se, sem dúvida, uma das maiores influenciadoras de arte do mundo, apesar de poucos acreditarem que isso seria possível, pois ela tinha todas as características das minorias: era mulher, judia, estrangeira, lésbica e ativista do movimento feminista. Infiltrou-se nos bastidores parisienses para descobrir e revelar artistas, pois, apesar da paixão pela arte, seus recursos não permitiam aquisições muito caras, obrigando-a a detectar pintores emergentes antes deles se tornarem famosos. Gertrude posou para a obra no ateliê parisiense de Picasso, que criou uma imagem icônica para retratá-la. Ela adorou o resultado e seu rosto deixou de ser desconhecido para definitivamente ganhar o estrelato mundial.

9- “La Toilette”, de Henri de Toulouse-Lautrec (1889) – “La Toilette”, também conhecida como Rousse, retrata uma mulher ruiva, sentada no chão, de costas para o observador e se preparando para o banho. Trata-se de uma cena doméstica de uma mulher que está quase toda despida, retratada com cores claras. Não se sabe ao certo quem é a mulher (talvez seja Carmen Gaudin), mas a obra tornou-se um ícone por abandonar a pose acadêmica, por ter um enquadramento totalmente diferenciado para a época e por chamar a atenção para uma cena comum, mas extremamente interessante, como se estivéssemos olhando pelo buraco de uma fechadura para descobrir mais sobre a intimidade alheia de uma mulher quase nua, sem os vestidos repletos de babados, comuns na época. Essa pintura teve vários nomes e chegou a se chamar “Rousse” na Exposição do XX em Bruxelas em 1890, em uma alusão às ruivas que o artista gostava de retratar nas suas andanças pela vida noturna de Paris, com muitas prostitutas e cabarés.

10 – “Nu Dormindo com os Braços Abertos”, de Amedeo Modigliani (1917) – Ele produziu cerca de 350 retratos e quase todos de pessoas desconhecidas. Suas obras sempre tinham uma característica em comum: os rostos compridos e finos, semelhantes a máscaras com olhos marcantes. Modigliani era o símbolo de uma tragédia. Desde adolescente adorava pintar e chegou a se especializar em nus artísticos na Academia di Belle Arti (Florença), mas abandonou o conforto de sua família burguesa, tornando-se um vagabundo pobre. Com isso, inspirado também na filosofia existencialista, optou por não pintar paisagens, como muitos de seus contemporâneos. Com rostos, explorou sua própria psicologia e com nus femininos retratou a sexualidade de forma figurativa, com muita ousadia e erotismo. Morreu jovem (35 anos) e na miséria, vítima de meningite tuberculosa, agravada pelo excesso de trabalho, álcool e drogas, como era de se esperar, infelizmente.

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