Imagine um artista enigmático. Ele se chamava Diego Velázquez é era o principal pintor do século de outro espanhol. Ele era genial por deixar o sujeito e o sentido ambíguos, convidando a múltiplas interpretações de sua pintura. Entre seu extenso trabalho, uma das principais obras-primas é o quadro “As Meninas”.

Velázquez nasceu em 1599 em Sevilha (Espanha) em uma família relativamente nobre. Desde muito cedo, demonstrou aptidão para a pintura, tornando-se aprendiz do pintor Juan de Herrera com apenas onze anos. Na década de 1620, sua produção era direcionada para representações de cenas bíblicas, sempre dominando a técnica de luz/sombra e demonstrando um grande talento para capturar pessoas em retratos fiéis. Tornou-se o pintor da corte espanhola após fazer um belo retrato do rei Filipe IV, um apaixonado por arte.

Em tempos de Covid-19, realidade e ilusão se misturam. É exatamente assim que me sinto ao admirar “As Meninas”, uma das pinturas mais importantes de toda a história da arte ocidental. É a realização suprema de Velázquez e uma demonstração consciente e bem calculada sobre os limites que uma pintura pode alcançar. Quanto mais olhamos para a obra, mais perguntas surgem. Poucas pinturas na história da arte geraram tantas interpretações e todas tão variadas. O fato é que a pintura é totalmente diferente de retratos reais tradicionais e parece uma foto instantânea, repleta de elementos.

Produzida há quase quatrocentos anos, continua repleta de mistérios, intrigando amantes e estudiosos de arte. Velázquez rompe com o modelo que era usado nos retratos da realeza e mostra uma cena da corte totalmente diferente do que estávamos acostumados a ver. Está repleta de personagens e de enigmas indecifráveis e de numerosos significados, que ajudam a tornar a pintura um objeto do desejo em busca de respostas para as diversas interpretações. Para quem Velázquez está olhando? O que ele está pintando na tela à esquerda do quadro? A menina no centro da pintura é realmente a infanta? O casal refletido no espelho é realmente o rei e a rainha? O que fazem realmente os demais personagens retratados na pintura? Por que incluir imagens de obras de outros artistas dentro do quadro?

A obra “As Meninas” é uma composição complexa e que, justamente por isso, é considerada uma das mais importantes do mundo. Faz parte do acervo permanente do Museu do Prado e enquanto as vacinas não estão disponíveis para nós, viaje pela obra sem sair de casa com essas 10 curiosidades que eu selecionei para a coluna de hoje:

-Corte real inspirou a obra- A pintura mostra um grande aposento no Real Alcázar de Madrid durante o reinado do rei Filipe IV da Espanha, mostrando várias figuras da corte espanhola representadas como se estivessem em uma fotografia. Alguns personagens olham para fora do quadro em direção ao observador, enquanto outros interagem entre si. A jovem infanta Margarida Teresa está cercada por um séquito de damas de companhia, incluindo um guarda-costas, dois anões e um cachorro. Pouco atrás deles está o próprio Velázquez. Sim, o artista incluiu na tela um autorretrato, trabalhando em uma grande tela. O artista olha para longe, além do espaço pictórico onde o observador da pintura estaria. Ao fundo está um espelho que reflete o rei Filipe e a rainha Maria Ana, como se estivessem sendo refletidos pelo quadro que Velásquez aparece produzindo dentro da própria pintura.

-Nova forma de olhar- Grande parte da fascinação despertada pela obra de Velázquez está na forma como a cena está montada. Por isso, essa obra é uma das que mais causa impacto para quem a admira. Mostra um “jogo elíptico” dentro da cena, misturando realidade e ficção, com muitos reflexos e distrações para intrigar quem observa a pintura. Geralmente quando admirando uma obra, temos a sensação de estar no mesmo ângulo do pintor. Porém, “As Meninas” inverte essa situação e nos coloca no lugar de quem está sendo retratado. A diferença dessa obra para os retratos tradicionais da realeza da época é que o quadro “As Meninas” parece uma cena de um filme, repleta de ação e o movimento. Além disso, a incomum presença do próprio pintor no quadro, ao fundo, olhando na direção do espectador, aumenta ainda mais o enigma em torno dele.

-Nome do quadro mudou- Velázquez batizou o quadro de “A Família de Filipe IV”. O nome atual “As Meninas” surgiu em 1843, quando os especialistas de arte da época chegaram ao consenso de que a pintura ia muito além de um simples retrato da família real.

– O pintor brilha tanto quanto a realeza- Velázquez quis marcar seu nome na história da arte com quadro, e conseguiu. A obra é uma forma inteligente de Velázquez mostrar sua própria importância na corte, uma vez que ele incluiu seu autorretrato na pintura, sendo o primeiro artista a estar figurando ao lado da realeza. Se você olhar de perto, ele parece como o grande protagonista da obra. Aparece com uma paleta na mão esquerda e o pincel na mão direita, como se estivesse sendo flagrado durante seu trabalho. Para alguns estudiosos, isso mostra uma antiga reivindicação dos artistas do século 16, que queriam valorizar seus trabalhos, destacando que eram muito mais do que simples artesãos. As “As Meninas” era uma das obras preferidas do Rei. Ficou guardada no Palácio Real até 1819, quando foi transferido para o Museu do Prado, onde permanece como um dos grandes destaques do acervo permanente. Portanto, até o século XIX, a obra não era conhecida.

-Estúdio e personagens- O quadro “As Meninas” está ambientado no estúdio de Velázquez, que ficava na Real Alcázar de Madri. O local era uma fortaleza que foi convertida em palácio real para hospedar o rei Filipe IV e sua família (1621-1665). A sala está repleta de personagens que não estão lá por acaso: uma princesa, as damas de companhia, uma guarda-mor, um anão, um bobo da corte, o Rei e a Rainha, o educador, o camareiro e o próprio Velázquez. No centro da tela com muita luminosidade está a princesa, também conhecida como a imperatriz e a infanta Margarita Maria da Áustria. Ela é bastante angelical, tem o cabelo dourado e bochechas rosadas. Mostra leveza em um exuberante vestido de cor creme com uma saia flutuante. Ao seu lado estão as damas de companhia que a ajudavam em sua rotina diária. Atrás delas há uma monja, que parece estar discutindo com um guarda não identificado. No centro da parede ao fundo há uma porta aberta pela qual dá para ver o camareiro da rainha encarando o espectador e empurrando uma cortina para deixar entrar mais luz natural enquanto o pintor trabalha. O casal real aparece refletido em um espelho, como se estivessem no mesmo local dos espectadores, enquanto Velázquez pinta seu retrato.

-Referências artísticas- Existem várias referências histórico-artísticas importantes, que se materializam no próprio pintor ou nos quadros que estão pendurados na parede. É uma obra de arte dentro de uma obra de arte por mostrar uma série de quadros pendurados na parede de artistas como Peter Paul Rubens, outro pintor favorito do rei. Além disso, a presença do espelho torna a pintura uma reflexão sobre o ato de ver e faz o espectador se questionar sobre as leis da representação, sobre os limites entre pintura e realidade e sobre seu próprio papel dentro da pintura.

-Mistério no espelho- Há muito mistério e muitas teorias em torno do espelho, que mostra a imagem do Rei Felipe IV e da Rainha Maria Ana de Áustria, os pais da princesa. Por esse motivo, a pintura de Velázquez, de certa forma, é considerada (também) de um retrato de família. Entretanto, há especialistas que defendem a ideia de que o casal registrado não é o real e que Velázquez brincou com a cena e a perspectiva da imagem. Para alguns, o espelho simplesmente reflete duas pessoas, assim como espectadores comuns poderiam ter suas imagens presentes na obra. A obra extremamente original também nesta perspectiva. A pintura é fascinante por colocar os espectadores na posição de rei e rainha. A obra torna quem está olhando para a pintura um espectador e um participante.

-Ilusionismo- Velásquez deu com a obra um passo decisivo no caminho do ilusionismo, que era um dos objetivos da pintura europeia na Idade Moderna. Ultrapassou a transmissão da semelhança e procurou com sucesso a representação da vida ou da animação. Dizem que a obra é a representação de uma cena invertida, vista pelo seu reverso. Além disso, Velázquez marca um espaço imponderável, entre o visível e o invisível, como se estivesse sendo retratado em um intervalo de tempo entre a pintar e o ato de observar a modelo. A luz que incide no cenário da pintura, é uma ligação entre o real e o espaço representado, permitindo mostrar os personagens e criar o mistério sobre o reflexo no espelho, que é a reprodução do invisível. Embora suas obras chamem a atenção pela aparente naturalidade, elas são frutos de muito estudo, de uma elaboração intelectual e da busca de uma nova representação do mundo. Com técnicas e conceitos complexos, o artista história, valores e ideias da época de uma maneira totalmente revolucionária. Essa riqueza e variedade de elementos, bem como a complexidade de sua composição e a variedade de ações que representa, fazem de “As Meninas” um retrato único e que vai muito além dos usuais deste gênero.

-A cruz de Santiago e a controvérsia das datas– Por causa da idade da infanta, praticamente todos os historiadores e restauradores de arte identificam que o quadro “As Meninas” foi pintado em 1656. Essa seria uma conta simples, uma vez que Margarita nasceu em 1651. Porém, Velázquez inclui seu retrato no quadro usando uma elegante roupa preta com uma cruz vermelha de Santiago no peito. Este símbolo é indicativo do título de Cavaleiro, que o rei Filipe IV concedeu a Velázquez somente em 1659. Como seria possível ter a cruz na obra três anos antes do artista ser incluído na Ordem de Santiago? Alguns estudiosos insinuaram que a cruz vermelha foi adicionada à tabela mais tarde por instruções do rei, mas estudos não identificaram camadas adicionais de tinta. Então, seria provável que o Velásquez não só se inseriu na pintura em destaque, ao lado da realeza, como também manifestou seu desejo antes de receber o reconhecimento da Ordem de Santiago, uma prestigiosa ordem religiosa e militar. Mas, o historiador de arte Jonathan Brown, um dos maiores especialistas em Velázquez, defende a teoria que a pintura foi feita entre a época em que o artista foi nomeado cavaleiro em 1659 após ajudar o Rei Filipe em uma importante viagem política à França em 1660. Para ele, “As Meninas” foi uma espécie de presente de agradecimento ao rei Filipe por ter sido nomeado cavaleiro.

-Eternizando a realeza – A jovem princesa tinha apenas cerca de cinco anos quando foi eternizada na pintura de Velásquez. Embora o rei Felipe IV tivesse 12 filhos, Margarita Teresa foi apenas uma das duas que sobreviveram até a idade adulta. Mais tarde, ela se tornou a Sagrada Imperatriz Romana quando se casou com Leopoldo I. Na pintura ela aparece cercada de proteção, sendo vestida por duas ajudantes, com todo o esplendor. Curiosamente, seu olhar não está direcionado para nenhuma das damas de companhia, mas diretamente para quem está atrás do cavalete de Velázquez.

Para mim, essa mistura de realidade e ficção é realmente muito instigante. Espero que você aproveite seu dia observando essa obra-prima repleta de detalhes e se tiver uma boa história para compartilhar, aguardo contato pelo Instagram Keka Consiglio, Facebook ou Twitter.