No Dia das Mães, a octacampeã brasileira de esgrima Karina Lakerbai comemorou a data em um restaurante da capital paulista. Estavam lá, além dela, a mãe Valéria e a avó Sviatlana. Um assunto não saiu da roda: a antiga União Soviética, estado socialista onde as três nasceram e que foi dissolvido em 1991, após sofrida distensão. Além da arquitetura dos prédios residenciais, a vida modesta está viva na memória da família. Os Lakerbai não esquecem do sótão onde guardavam os alimentos que colhiam em um pequeno pedaço de terra em Mogilev. Naquela cidade, hoje pertencente à Bielorrússia, os constantes cortes de energia tiravam Valéria do sério toda vez que precisava dar banho em Karina, a única filha, nascida ali em dezembro de 1988. Há 21 anos vivendo no Brasil, as três mantêm velhos hábitos, como conversar na língua nativa e servir sopas russas acompanhadas de shots de vodca. Karina carrega muito mais do que lembranças. Ela desembarcou em território brasileiro trazendo sequelas do acidente nuclear de Chernobyl, que há 30 anos matou 25 mil pessoas e expulsou outras 200 mil de suas casas. Desde criança, convive com tumores benignos chamados osteocondromas. “Eles são uma espécie de pequenos ossos que nascem debaixo da pele”, diz Karina. “Ao longo do crescimento da pessoa, vão se afastando das articulações. No meu caso, eles entram nas articulações.”
Aos 27 anos, Karina já se submeteu a três cirurgias (quadríceps, ombro e rótula) para raspar os ossos que cresceram. Na literatura médica, o osteocondroma é considerado uma doença hereditária. Só que não há registros de calcificações ósseas semelhantes em seus pais ou outros familiares. Tudo leva a crer, segundo ela, que sofrera uma mutação genética ao ficar exposta, durante a infância, ao material radioativo liberado – em torno de quatrocentas vezes mais potente do que o da bomba atômica de Hiroshima – com a explosão de um dos reatores de Chernobyl. “Ninguém conseguiu comprovar a mutação, mas não há outra explicação”, diz ela. “Fico pensando quantos milhões de mortes não foram admitidas pelo governo russo.”

Karina na academia onde treina, em São Paulo. Por causa de seguidas lesões, ela se tornou ambidestra, o que é uma vantagem para esgrimistas
Karina nasceu dois anos depois da tragédia nuclear, que aconteceu a 300 km de Mogilev. Como o município apresentou níveis médios de radiação, os médicos aconselharam a população a deixar a cidade. A mãe Valéria, coreógrafa de ginástica artística, e o pai Alkhas Lakerbai, treinador de esgrima, tentaram a vida na Geórgia. Guerras locais, porém, fizeram com que os Lakerbai retornassem à Bielorrússia. Pouco depois, Valéria aceitou um convite para trabalhar em uma academia de ginástica em São Paulo e se mudou para o Brasil sozinha. Karina, então com 6 anos, e o pai vieram seis meses mais tarde.
No Brasil, os Lakerbai encontraram um ambiente favorável para criar a filha, até então muito pálida e com olheiras acentuadas para a idade. Karina tem ainda hoje uma propensão à anemia, descoberta quando tinha dois anos e meio. “A composição dos meus glóbulos vermelhos é baixa e eles não carregam tanto sangue quanto deveriam”, diz a esgrimista. Desde criança, também convive com asprotuberâncias ósseas que cresceram – algumas têm 1 centímetro – desgovernadamente em diversas partes do corpo. Aos 15 anos, em uma das cirurgias para a raspagem de um osteocondroma, sofreu um choque anafilático que paralisou um lado de seu corpo por seis horas. “Tenho uma válvula mitral avariada e, por isso, faço acompanhamento constante com exames do coração.”
Algumas calcificações espalhadas pelo corpo, como uma na coxa em formato de gancho e outra na canela, não foram retiradas porque não machucam as articulações. “Eu podia ter desenvolvido uma supervelocidade e ter impulsão maior, mas fiquei como a mutante com ossinhos a mais que só servem para assustar os amigos”, brinca. Karina diz se divertir com a cara de espanto das pessoas quando mostra as pequenas calcificações. A mãe se preocupa com a exposição por temer que a filha sofra bullying e seja vista como uma aberração. “É bom deixar claro que a minha filha não é doente”, diz Valéria, atualmente umas das coreógrafas da seleção brasileira feminina de ginástica artística. “Ela é uma moça saudável que tem uma vida inteira pela frente.” Karina entende as angústias da mãe. “São preocupações dela em relação a uma doença que é estranha quando contada, mas que na prática não tem nada de espantosa”, diz a esgrimista. “Eu não sou uma X-Men.” Os efeitos da radiação provocaram menos incômodos do que o fato de ser estrangeira. Karina diz que sofreu bullying na escola por ser do leste europeu, e apenas por isso.

“Eu poderia ter desenvolvido uma supervelocidade e ter impulsão maior, mas fiquei como a mutante com ossinhos a mais que só servem para assustar os amigos”
Sua vida é atribulada. Socióloga formada pela Universidade Federal de São Paulo com bacharelado e licenciatura, atua no terceiro setor das 8 h às 17 h antes de ir para os treinos de esgrima. Durante uma década, ninguém no Brasil foi páreo para ela. Uma de suas principais qualidades é a resistência. Exemplo disso se deu em Medellín, na Colômbia. Em 2009, disputou o campeonato sul-americano preocupada em manter a posição no topo do ranking nacional e, assim, garantir a verba do Bolsa Atleta. Para tanto, precisava apenas chegar até a fase final das disputas. O problema é que fazia três meses que havia rompido e operado o ligamento do ombro direito. E Karina é destra. A solução foi treinar a mão esquerda. O que ela não esperava era o resultado que viria a seguir: ouro no sabre. “Eu provei que, na esgrima, a mente é mais poderosa que um braço forte.” No ano seguinte, novamente em uma competição em Medellín, Karina deslocou o ombro esquerdo. Mesmo assim, continuou na competição e faturou a medalha de bronze. “Sai do ginásio e fui direto para o hospital tomar injeções”, conta.
As seguidas contusões fizeram com que se tornasse uma atleta ambidestra. Na esgrima, essa característica se tornou uma vantagem, pois os adversários nunca sabiam com qual mão Karina iria jogar. Em 2015, porém, Karina viu seu rendimento piorar depois de ter rompido o ligamento do tornozelo direito. Preferiu não se submeter a uma cirurgia e, em 2016, perdeu a vaga olímpica para a carioca Marta Baeza. A família será representada no Rio pela mãe de Karina, Valéria Lakerbai, da seleção feminina de ginástica artística, e pelo pai Alkhas, treinador da seleção brasileira de esgrima. Apesar de estar fora da competição, Karina não tem do que reclamar. Ela é uma vencedora. No esporte e na vida.