Um dos maiores equívocos da história da Justiça brasileira ressurgiu na semana passada e provou que as mazelas do sistema criminal ainda prevalecem. Na quarta-feira 13, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu afastar a juíza Clarice Maria de Andrade, que condenou uma garota de 15 anos a ficar em uma cela com 30 homens em Abaetetuba, no Pará, em 2007. O que em princípio parecia uma punição justa é na verdade um privilégio e um erro inaceitável dos magistrados brasileiros. A jovem foi vítima de agressões e violência sexual durante os 26 dias em que permaneceu na cadeia. O caso se tornou um dos mais graves registros de violação aos direitos humanos no País. Hoje, nove anos depois, enquanto a menina ainda luta para enfrentar o trauma, a juíza continuará a receber seu salário proporcional ao tempo de trabalho, sem prejuízos. Além deste, outros casos mancharam a Justiça brasileira. Não há dados que apontem quantas pessoas são presas indevidamente no País, o que deixa ainda mais obscura a situação das vítimas. Uma pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, coordenada pela psicóloga Lilian Milnitsky Stein, revela, porém, que o Brasil está pelo menos 30 anos atrasado na coleta de provas testemunhais e de reconhecimento utilizadas por policiais e juízes, o que compromete a perícia e as provas técnicas, essenciais para a comprovação de culpa.

Trauma na prisão

O mestre de obras Gabriel Afonso de Araújo, de 38 anos, embarga a voz toda vez que se lembra dos 21 dias em que ficou confinado em uma cela de 15 metros quadrados, com 29 presos, na Casa de Prisão Provisória de Aparecida de Goiânia, em Goiás. “Passei pelos dias mais tristes da minha vida”, diz. O detalhe é que Araújo foi preso por engano. Desde a quinta-feira 6, quando reconquistou sua liberdade, ele sai às ruas com dois alvarás de soltura. Para tentar reconstruir sua vida, pretende entrar com um recurso na Justiça que altera seu sobrenome, já que ter perdido os documentos há mais de 15 anos foi o principal motivo que o levou a ser confundido com um criminoso procurado pela polícia de Minas Gerais. “Eu falava que era inocente, mas ninguém acreditava”, afirma ele.

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Como faltam provas técnicas, exames de DNA e perícias avançadas no Brasil, 90% dos profissionais de justiça atribuem importância massiva às provas testemunhais ou de reconhecimento, que dependem quase que exclusivamente das lembranças das vítimas. A sequência de erros começa quando a polícia militar faz o reconhecimento de uma região e prende um suspeito. “O delegado ratifica a voz de prisão do policial, sem mais investigações”, afirma José Carlos Abissamra Filho, advogado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. O drama do dentista André Luiz Medeiros Biazucci Cardoso, 29 anos, dá a dimensão do que um falso reconhecimento pode causar. Acusado de ser o autor de seis estupros e um roubo, ele se tornou alvo da polícia depois de uma mulher ter mencionado a placa de seu carro à polícia. A informação, porém, foi coletada dois anos após a denúncia. O jovem foi preso em outubro de 2013. No dia do reconhecimento, as cinco vítimas afirmaram que Cardoso era o autor dos crimes. Ele permaneceu preso por seis meses e 26 dias no Rio de Janeiro. Enquanto estava na prisão, pediu para confrontar seus exames de DNA com as provas biológicas do agressor. E foi considerado inocente. “Tudo leva a crer que a polícia induziu as vítimas durante os depoimentos”, diz.

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Um dos casos mais emblemáticos de falhas da Justiça ocorreu com a dona de casa Daniele Toledo, hoje com 31 anos. Em junho deste ano, ela foi inocentada pelo assassinato da filha, Victória, após passar 37 dias na prisão, onde foi torturada e espancada até perder a audição e a visão direita. O bebê de um ano e três meses sofria convulsões e tinha uma rotina médica intensa. No dia 28 de outubro de 2006, em uma dessas crises, Victoria foi levada ao Pronto Socorro de Taubaté, em São Paulo e teve três paradas cardiorrespiratórias. “Foi quando a médica me acusou de tê-la matado de overdose de cocaína.”

Daniele foi levada imediatamente para a delegacia. “O delegado falava para eu confessar logo o crime, me xingou de vagabunda e filha da puta.” À época, um teste foi realizado na mamadeira e identificou um dos derivados de cocaína. Em 2008, descobriu-se por meio de um exame de DNA que a substância era um dos compostos da medicação que Victória fazia uso. Na prisão ela foi torturada numa cela com 20 mulheres. Apesar de ter sido inocentada, hoje Daniele faz uso de antidepressivos e ansiolíticos e perdeu o emprego. “Perdi tudo por conta de um julgamento precipitado.”

Fotos: João Castellano/istoé; Renato Velasco; Factual Imagem