17/06/2020 - 20:00
Nesta semana, a Lei de Segurança Nacional (LSN), promulgada em 1983, no fim da ditadura militar, apareceu duas vezes no noticiário.
Na segunda-feira, o ministro da Justiça André Mendonça pediu que o chargista Aroeira seja investigado por retratar Jair Bolsonaro como nazista. Baseou-se no artigo 26 da LSN.
É coisa brava. O artigo prevê cadeia entre 1 e 4 anos para quem caluniar ou difamar os presidentes da República, do Senado, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal. Os mesmos crimes constam do Código Penal. A diferença é que as penas são bem menores: vão de 3 meses a no máximo 2 anos de detenção.
Ontem, outra aplicação da lei. O ministro do STF Alexandre Moraes autorizou que medidas de busca e apreensão fossem realizadas contra ativistas e deputados bolsonaristas.
As diligências foram pedidas pelo Procurador Geral da República Augusto Aras. Estão ligadas à investigação que teve início em abril, depois daquela domingueira anti-democrática em que manifestantes, diante do presidente Jair Bolsonaro, demandaram uma intervenção militar e o fechamento do Congresso e do STF.
Aras considerou que os manifestantes podem estar implicados em crimes previstos na LSN, provavelmente os dos artigos 16, 17 e 18, que falam de atentados ao Estado de Direito ou tentativas de impedir o funcionamento dos poderes da República por meio de ameaças.
Suspeito que o bolsonarismo esteja fazendo o seguinte cálculo: se o Supremo autorizou uma investigação contra nossos apoiadores com base na LSN, terá de acatar também nosso pedido. Caso contrário, poderemos dizer que o tribunal usa dois pesos e duas medidas. Contra a direita, vale usar a lei criada pelo regime militar, mas contra a esquerda, nem pensar. Escândalo!
Antes que o argumento comece a ser gritado por aí, digamos com clareza: é picaretagem. Das grossas.
Muita gente no Brasil acredita que a Lei de Segurança Nacional é um entulho autoritário e já deveria ter sido revogada, por estar em desacordo com o espírito da Constituição de 1988.
Em 2002, quando era ministro da Justiça, o jurista Miguel Reale Júnior chegou a apresentAr um projeto para esse fim. No lugar da LSN, haveria um novo capítulo no Código Penal, sobre os “Crimes Contra o Estado Democrático de Direito”. Mas o Congresso preferiu não mexer no assunto.
Assim, coube ao STF estabelecer um método para aplicar a LSN de acordo com a lógica de um regime democrático.
A solução foi a seguinte: para enquadrar alguém nos crimes previstos na LSN, é necessário provar que a pessoa tem objetivos políticos e que suas ações causam uma lesão real ou potencial aos bens que a lei quer proteger, ou seja, a segurança nacional e a ordem política e social. É uma jurisprudência pacífica, criada ao longo dos anos, bem estabelecida na corte.
Só com má-fé se consegue encaixar uma charge jornalística nesse figurino. Mesmo que se admitisse que ela tem um objetivo político, é certo que não traz nenhum risco à segurança nacional ou à ordem política e social. O presidente pode até processar o cartunista por calúnia e difamação, mas deve fazer isso como qualquer outro cidadão, usando as regras do Código Penal.
A situação se inverte no caso do mecanismo de bullying mantido pelos apoiadores do presidente. Além de haver fortes indícios de que a rede envolve financiamento encoberto e coordenação política, muitas de suas mensagens incitam a atos violentos contra o STF e fazem ameaças concretas aos ministros. Aí estão aí os dois requisitos exigidos para a aplicação da LSN.
Entendo que não se goste de uma lei assinada pelo general-presidente João Batista Figueiredo, com o claro objetivo de coibir o dissenso político no Brasil. Se alguém quiser ressuscitar o projeto de Miguel Reale ou criar algum outro substituto para a LSN, dou todo o apoio.
Mas acho improdutivo ficar com nojinho da lei quando existe uma interpretação já estabelecida no Supremo que evita o seu uso autoritário. Comentei na semana passada o voto do ministro Luiz Fachin sobre a constitucionalidade do inquérito das fake news. Ele não gosta da LSN e se recusou a citá-la. O resultado foi um raciocínio muito mais tortuoso do que precisava ser.
Uma lei da ditadura pode, sim, ser usada para defender a democracia. Ainda bem. Hesitações a respeito disso só causam confusão neste momento e beneficiam os golpistas que realmente gostariam de destroçar as instituições do país.