Documenta 14/Aprendendo com Atenas/ até 17/9 Kassel, Alemanha

Dois meses após ser inaugurada em Atenas, na Grécia; cinco meses após a posse de Trump nos EUA; três meses depois de aprovado o Brexit; dez dias após atentado matando 80 pessoas e ferindo mais de 300 em Cabul, no Afeganistão; e poucas horas depois dos últimos ataques terroristas em Londres e Paris, a Documenta 14 abriu no sábado 10 em Kassel, na Alemanha. Ainda que o engajamento com realidades sócio-políticas tenha sido o partido de nove entre dez grandes exposições periódicas internacionais nos últimos 15 anos, é preciso notar que poucas vezes chegou-se ao grau de eloquência política como nesta 14ª edição da Documenta de Kassel, intitulada “Aprendendo com Atenas”.

O mais importante evento artístico do planeta, que tem lugar a cada cinco anos na cidade alemã de Kassel, tem hoje entre seus maiores preceitos colocar a crise dos refugiados no centro do debate; questionar a divisão do mundo por “identidades”; promover a escrita de histórias “contra-hegemônicas” e reconhecer a incerteza como um retrato do nosso tempo.

Com curadoria geral do polonês Adam Szymczyk e obras de cerca de 150 artistas e coletivos em 31 museus, espaços culturais e locais abandonados, a Documenta exige do visitante a disposição ao deslocamento e à interlocução com a cidade, seus acervos, sua memória e, principalmente, as histórias de poder e dominação que envolveram as relações entre a Alemanha, a Europa e o mundo.

No movimento de varredura geográfica da cidade, é particularmente interessante a ocupação dos “pavilhões de vidro” da Kurt-Schumacher-Strasse. Em vez da casa de vidro da arte e arquitetura moderna de Lina Bo Bardi ou Dan Graham, ou de vistosos pavilhões ao modo das exposições universais do século 19, o que se encontra ali são seis galerias comerciais desativadas, em estado precário de conservação, em uma região da cidade fronteiriça com comunidades imigrantes da Turquia, Etiópia e Bulgária. Os projetos artísticos ocupantes são irregulares, com momentos altos nos trabalhos de Mounira Al Solh (“Nassid’s Bakery”) e do coletivo escandinavo Joar Nango, formada por arquitetos, carpinteiros e músicos. Eles foram os responsáveis por fabricar a primeira “obra” exposta: o púlpito onde discursaram os oito curadores responsáveis pela D14.

 

A Neue Gallery — que ganha centralidade nesta 14ª edição, ao ser configurada como espaço de memória e “auto-conhecimento das forças históricas que tornaram a Documenta possível” — expressa bem as tensões históricas a que a Documenta se propõe. Logo na primeira sala do museu, frente a frente, encaram-se “Real Nazis” (2017), instalação de Piotr Uklánski, uma galeria de retratos dos monstros do século 20, e “Planting of Trees” (1971), pintura do albaniano Edi Hila, que por trás de uma cena campestre aparentemente inofensiva e naïf escondem-se vidas caladas por um regime totalitário.

Descobrem-se na Documenta momentos sublimes de construções poéticas sobre o desastre. Como os escombros de barcos — memória trágica das migrações mediterrâneas — transformados em instrumentos musicais pelo mexicano Guillermo Galindo, exibidos na Documenta Halle. Há também a potência da insubmissão, expressa na vídeoinstalação “Monday” (2017), do coletivo Iqhiya, de Cape Town, montada em uma estação de metrô desativada. O trabalho mostra um furioso protesto de alunos em sala de aula e traça um insuspeito paralelo aos acontecimentos vivenciados recentemente por estudantes secundaristas em São Paulo, em reinvindicações por melhorias na educação. A residência artística Capacete (RJ) é o único participante brasileiro da Documenta 14, em Atenas.

As ressonâncias que as propostas da Documenta 14 assumem na vida contemporânea fazem pensar por que a curadoria não teria encontrado, entre artistas brasileiros, uma pesquisa que pudesse vir a contribuir em seus debates.

Por outro lado, a presença da arte contemporânea grega apresenta-se excessiva e problemática. Ao “importar” grande parte da coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea da Grécia, instalando-a no edifício-símbolo da Documenta, o Fridericianum, o curador polonês Adam Szymczyk quer enfatizar sua tese de que “desaprender tudo o que acreditamos saber é o melhor começo”, como declarou na conferência de abertura, bem posicionado atrás do púlpito de peles e neon do coletivo nórdico.

A participação de Atenas como tema e sede da D14 tem várias camadas de sentido. As primeiras razões alegadas dizem respeito ao papel de mediação que a Grécia tem no processo migratório de refugiados sírios. Mas o que se vê em Kassel é uma coleção de obras com muitas fragilidades. Além disso, diferentemente de outros grupos de artistas, colocados em circulação e respirando entre espaços e conceitos, os artistas gregos estão “ilhados” no Fridericianum, talvez tanto quanto o país esteja, desde que mergulhou na pior crise econômica entre os membros da União Europeia.

PÚLPITO A obra do coletivo escandinavo Joar Nango abriu espaço para os discursos de oito curadores da D14 (Crédito:Paula Alzugaray e Ricardo Van Steen)

“Aprendendo com Atenas” é uma mostra auto-reflexiva, de fortes colocações. Mas apesar de momentos altos, seu discurso nem sempre encontra eco nas obras expostas. Nesse sentido, parece conter mais a exposição de um “statement” curatorial do que a livre expressão dos estados da arte atual. Resolvem bem a complexa proposta da curadoria, no entanto, projetos comissionados, que pensam as relações pós-coloniais entre Grécia e Alemanha em residências entre Atenas e Kassel. Caso do duo Prinz Gholam, autor da série “Speaking of Pictures” (2017), videodiário de relações corporais estabelecidas entre os artistas com monumentos gregos e alemães.