“Idiota”, “bruto”, “bestial”, “selvagem”, “inferior”. Esses são alguns dos adjetivos usados para descrever o homem de neandertal desde que os primeiros sinais de sua existência foram descobertos, na Europa do século 19. De baixa estatura, corpo musculoso e crânio alongado, o “Homo neanderthalensis” foi logo classificado pela comunidade científica como uma versão menos evoluída de nós, “Homo sapiens”. A extinção desse primo distante do gênero Homo, que habitou a Terra de 400 mil anos a 40 mil atrás, só confirmaria sua condição de inferioridade. “Já são mais de 100 anos de preconceito com os neandertais”, diz o paleoantropólogo David Frayer, da Universidade do Kansas, nos Estados Unidos. “Mas novas descobertas têm revelado que as diferenças entre eles e nós, humanos, são bem menores do que se imaginava”, afirma. Estudos recentes identificaram um novo homem de neandertal – e ele está longe de ser bestial ou idiota.

Frayer, um dos paleoantropólogos mais respeitados do mundo, anunciou uma das novas descobertas em meados de janeiro. Ele e sua equipe reanalisaram uma rocha esquecida há mais de um século nos arquivos do Museu de História Natural do Zagreb, na Croácia, e perceberam algo inusitado. A pedra não se parecia com nenhuma outra da caverna onde tinha sido encontrada – local habitado por neandertais por milhares de anos. Após estudar a composição da rocha e o sítio em que foi achada, ele e sua equipe concluíram que a pedra foi carregada até o local e nunca foi usada como ferramenta. Portanto, não teve função prática. “Ela foi escolhida unicamente por ser um objeto diferente dos outros, curioso”, diz Frayer. “Tinha valor subjetivo, ou simbólico, talvez até ritualístico”.

Cognição refinada

A descoberta é importante por mostrar que os neandertais tinham habilidades cognitivas refinadas para construir um mundo de símbolos complexo o suficiente para viabilizar esse tipo de comportamento. Outros hábitos que se assemelham, em complexidade, a este vêm sendo descobertos e têm afastado as pechas de “besta” ou “idiota” dos neandertais.
Mais: condutas deste tipo têm aproximado os neandertais dos seres humanos primitivos. Hoje, há quem defenda que a maneira de agir de ambas as espécies praticamente se equivalia na época em que elas coabitaram a Terra. Não à toa, há registros de material genético neandertal em amostras de DNA de seres humanos contemporâneos, o que indica que, em algum momento, as espécies não só se relacionaram, como procriaram.63

Para especialistas, sítios arqueológicos pela Europa e Ásia continuarão a revelar as proezas do homem de neandertal

Como não poderia deixar de ser, a história da extinção dos neandertais também foi contaminada pelo preconceito. Como eles desapareceram há 40 mil anos – época que coincide com a chegada do Homo sapiens à Europa – logo se construiu uma narrativa épica de embate entre as espécies, com o ser humano se saindo vitorioso. Novos estudos, porém, indicam que quando o Homo sapiens chegou à Europa, a população de neandertais já havia minguado em função de instabilidades climáticas. Incapaz de garantir uma taxa de natalidade superior à de mortalidade, a espécie foi sumindo até desaparecer por completo, provavelmente com pouca influência direta de nossos antepassados humanos. “Com o avançar das pesquisas, as semelhanças entre nós e os neandertais ficarão cada vez mais evidentes”, afirma Frayer. “Não fomos iguais, mas fomos muito mais parecidos do que se supunha.”

Quase humanos

Estudos recentes revelam a capacidade do homem de neandertal de reconhecer e usar elementos culturais simbólicos, além de planejar atividades – como fazem os humanos

Produziam ferramentas e jóias
Escavações pela Europa, mas em especial na Croácia, revelam pulseiras e colares feitos de ossos de animais e garras de águia. Os ossos costumam ter sinais de desgaste, o que sugere que os adornos eram usados no dia a dia pelos neandertais

Enterravam seus mortos
A análise de cerca de 30 esqueletos espalhados pela Europa Ocidental revelou jazigos cuidadosamente cavados e corpos cobertos por camada de terra espessa o suficiente para proteger o enterrado de animais e intempéries

Organizavam caçadas
Bandos de neandertais organizavam caçadas de bisões, rinocerontes primitivos e até predadores, como ursos. A prática exigia coordenação e comunicação entre membros do bando, que escolhia qual animal caçar pesando esforço requerido e recompensa

Cuidavam de doentes e idosos
Alguns registros mostram quase 20 anos de cuidados com neandertais cegos, amputados ou com dificuldade de locomoção. Em um caso, descobriu-se um neandertal sem dentes e com graves infecções bucais que só viveu por ter tido ajuda dos pares

Colecionavam pedras
O colecionismo de objetos sem valor prático indica rica vida simbólica. Em escavação na Croácia, foi encontrada uma pedra que destoava das demais na cor e composição: ela foi levada até lá pelos neandertais unicamente por sua beleza, dizem os especialistas