21/07/2017 - 18:00
Picasso e Matisse; Manet e Degas; De Kooning e Pollock; Lucian Freud e Francis Bacon. É possível que quatro pares de pintores tenham redefinido a forma de fazer arte entre 1860 e 1950 pelo simples fato de terem se aproximado, admirado e influenciado mutuamente? Eis aí o argumento defendido pelo escritor australiano Sebastian Smee no livro “A arte da rivalidade — Quatro amizades que mudaram a arte moderna” (Zahar), de 2016, lançado agora no Brasil.
A tese de Smee, que é crítico do jornal “Boston Globe”, pode soar arbitrária por reduzir a aspectos cotidianos as façanhas artísticas do período que os historiadores da arte chamam de “moderno”, período de alta produtividade nas artes que lançou os mestres da vanguarda do século 20 — os oito em questão e muitos outros. Mas, segundo o autor, esses encontros se revelaram determinantes para propiciar o salto de inovação na obra cada um dos pintores. “Existe uma intimidade na história da arte que os livros ignoram”, diz Smee. “Eu tentei dar relevância aos contatos pessoais entre os artistas.”
A época escolhida por Smee é patriarcal: os artistas se pautam pela luta por status na arena das artes, pela competitividade e até pelo amor. São relações que ele denomina “homossociais”. Mesmo assim, as mulheres exerceram um papel importante na trajetória deles. Ele descartou os casais — como Aurguste Rodin e Camille Claudel, Frida Kahlo e Diego Rivera — porque o componente romântico obscurece o da rivalidade. Os relacionamentos entre os artistas homens potencializam sensibilidades aguçadas e envolvimentos intensos, voláteis e fortuitos. Daí ser curta a distância entre os surtos de paixão e inveja. Rivalidade, segundo Smee, tem a ver com “maleabilidade, intimidade e abertura a influências”. Ora, esse tipo de encontro pode ser rico, mas nem sempre acaba como um conto de fadas. Fascínio, sedução, rompimento e traição é o que mais acontece na vida dos artistas.
Inveja mútua
O francês Henri Matisse (1869-1954) mascarava a presunção dizendo que tolerava os rivais porque sabia paralisá-los por seu gênio. “Aceito influências, mas sempre soube como dominá-las”, disse. Nem sempre conseguiu fazê-lo. Ao contrário: seu maior inimigo estético foi o espanhol Pablo Picasso (1881-1973), considerado o talento máximo do seu tempo — o tempo de Matisse. O confronto entre os dois durou até o fim da vida. Picasso sobreviveu a Matisse, mas ainda assim tratava legado deste com ironia. Nunca reconheceu que foi Matisse quem lhe apresentou uma tela baseada em máscaras africanas em 1905, fato que o compeliu a pintar sua famosa tela “Les Demoiselles d’Avignon” (1907). Ao se deparar com o quadro, Matisse caiu na gargalhada, mas reconheceu o “roubo” e jurou vingança. No longo prazo, ele também emulou as cores e os ângulos ousados do rival de vida inteira. Admiravam um ao outro, sem jamais admitir.
Mais franca e visceral foi a amizade entre o inglês Lucian Freud (1922-2011) e o irlandês Francis Bacon (1909-1992). Apesar dos boatos, nunca tiveram um caso amoroso. Era uma relação entre mestre e discípulo. Na juventude, o heterossexual Freud dependia financeiramente de Bacon, homossexual e violento. Freud admirava o modo como o amigo “sentia a vida” — e como suas telas faziam parte dela: figurativas, tenebrosas, com corpos desfigurados e fundos vazios. Freud evitou esse método e encontrou a seu ao explorar a adiposidade e fluidos corporais de seus modelos. Levou meses para pintar o retrato de Bacon, de 1952. O rompimento aconteceu por causa das aventuras autodestrutivas de Bacon, que Freud reprovava. Mas Bacon disse que brigaram porque o amigo mais novo lhe devia muito dinheiro.
Tédio conjugal
A diferença entre a pintura com modelo vivo e o flagrante marcou a relação entre os franceses Édouard Manet (1832-1883) e Edgar Degas (1834-1917). Este admirava a técnica daquele em pintar temas de falso realismo — como “O estupro” (1868-69), cena imaginária de boudoir, com modelos em carne e osso. Para se afastar do mestre, Degas passou a pintar flagrantes cotidianos. Foi asssim que retratou Manet e a mulher Suzanne. A tela que enfureceu Manet a ponto de ele mutilá-la, cortando a figura de Suzanne. Smee supõe que Manet se sentiu flagrado em seu tédio conjugal por Degas. Ambos haviam sido seduzidos pela pintora Berthe Morisot, pivô da rivalidade. Degas dizia odiar Manet mesmo depois da morte do desafeto.
A inveja da intensidade com que outro artista vivia e usava os pincéis atormentou a vida e a obra do holandês Willem De Kooning (1904-1992), em face do método selvagem do americano Jackson Pollock (1912-1956), capaz de pintar dançando. De Kooning tentou imitá-lo, mas sua pintura era domesticada e abstrata. Ao sair do enterro de Pollock, morto em acidente de carro, De Kooning disse a um amigo: “Acabou. Sou o número um”. Quem dera.