05/12/2014 - 20:00
Até a sexta-feira 5, a apresentadora Andressa Urach, 27 anos, permanecia na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre. Ela estava no hospital havia seis dias, internada para tratar complicações surgidas por causa da colocação de uma substância na forma hidrogel para aumentar as coxas. O produto vem sendo utilizado de maneira incorreta em procedimentos estéticos como a que Andressa se submeteu e é, já há algum tempo, um dos alvos de maior preocupação dos médicos. Entre outras ameaças à saúde, pode provocar infecções, cegueira e até a morte. “Ele é extremamente nocivo. É uma bomba relógio que uma hora ou outra irá explodir”, afirma João de Moraes Prado Neto, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBPC).
PERIGO
Cinco anos depois de aplicar hidrogel, Andressa foi parar na UTI por
conta de complicações provocadas pela substância
Andressa sentia dores na região desde março. Em julho, submeteu-se à primeira cirurgia para a retirada do produto colocado há cinco anos. Seis dias depois, a apresentadora foi internada em São Paulo, com febre. Ela estava com uma inflamação decorrente dos resíduos do hidrogel que permaneciam em seu organismo. De lá para cá, seu estado foi piorando, até culminar na internação na UTI. Semanas antes de o drama da apresentadora ser divulgado, o País já havia conhecido uma tragédia fatal, dessa vez em Goiânia. Lá, uma mulher de 39 anos, Maria Medrado, morreu após ter se submetido a um implante no glúteo de uma substância que pode ser hidrogel ou até silicone industrial – uma análise toxicológica irá dirimir dúvidas (leia mais detalhes no quadro à pág 60). Maria e Andressa são as vítimas mais recentes de uma espécie de submundo do mercado da beleza que persiste no País. Uma zona nebulosa, em que compostos químicos são misturados de forma indevida ou ilegal e sem o mínimo de preparo por profissionais irresponsáveis ou golpistas de ocasião. Esta combinação compõe uma teia que escapa à fiscalização e atrai jovens dispostas a tudo para obter formas consideradas perfeitas. E, de preferência, a um custo mais baixo do que o desembolsado em clínicas que atuam de maneira correta e dispõem dos produtos apropriados.
Nesse cenário, o exemplo do hidrogel é perfeito. Trata-se de um polímero sintético utilizado para preenchimento cutâneo. O hidrogel “Aqualift” é indicado para correção de defeitos, contornos, assimetria de tecidos e na eliminação de alterações específicas da idade nos tecidos moles faciais. O produto pode ser encontrado nas versões face e corpo. De acordo com o que determina a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a quantidade a ser injetada no rosto pode variar de 1 a 50 mililitros (ml). No corpo, de 25 ml a 30 ml. Porém, Andressa – e dezenas de outras jovens – tiveram implantadas concentrações bastante superiores. A apresentadora, por exemplo, recebeu 400 ml de hidrogel em cada coxa.
O segundo problema diz respeito à durabilidade do produto. Ele é vendido aos clientes como uma substância absorvível. Ou seja, se algo der errado, o próprio corpo se encarregaria de resolver. Em no máximo cinco anos não haveria vestígio do composto. Mas isso não é verdade. “Ele se impregna nos tecidos e fica impossível retirá-lo totalmente”, afirma o cirurgião Prado Neto, da SBPC. “Aos poucos, isso pode causar processos inflamatórios recorrentes extremamente nocivos”, acrescenta.
Para completar o desastre, normalmente quem injeta a substância não é médico – os profissionais sérios preferem opções reconhecidamente seguras, como o ácido hialurônico ou a realização de enxertos de gordura para remodelar áreas mais extensas. Uma zona turva existente no campo das normas que regulam as atribuições de cada profissional da área de saúde autoriza biomédicos e fisioterapeutas, por exemplo, a realizar esses procedimentos. Sob protesto do Conselho Federal de Medicina (CFM). “A lei é clara: os procedimentos invasivos devem ser executados apenas por médicos, que são os profissionais devidamente capacitados para tanto”, afirma Carlos Vital, presidente do CFM. Porém, apesar do protesto médico, os conselhos dos fisioterapeutas e dos biomédicos emitiram resoluções nas quais permitem que seus associados executem intervenções invasivas. O CFM entrou na Justiça questionando o pleito.
Mesmo quando o profissional responsável pela aplicação é realmente médico, em grande parte dos casos ele não é cirurgião plástico ou dermatologista, os dois especialistas mais habilitados a fazer procedimentos do gênero. “Os riscos se multiplicam quando o procedimento é feito por pessoas que não conhecem anatomia e não sabem como proceder se houver complicações”, afirma a dermatologista Gabriella Correa de Albuquerque, coordenadora de cosmiatria da regional fluminense da Sociedade Brasileira de Dermatologia.
Na mesma categoria de risco do hidrogel está o metacrilato (PMMA). A apresentadora Andressa também tinha a substância implantada. Trata-se, neste caso, de um preenchedor definitivo. “Essa substância é um dos nossos pavores. Pode causar necrose nos tecidos e embolia pulmonar, entre outros problemas”, explica o cirurgião plástico Fernando Almeida Prado, presidente da regional paulista da SBPC. Isso ocorre, por exemplo, quando a pessoa que aplica a substância desconhece anatomia e a insere em um vaso sanguíneo, por exemplo. Ou se o composto migra pelo organismo e se aloja em alguma artéria.
Os problemas podem ser imediatos ou a longo prazo. “É possível que as complicações ocorram em um período que varia de três a 20 anos após a inserção”, alerta Alessandra Grassi Salles, responsável pela área de cosmiatria, laser e cirurgia plástica geral do Hospital das Clínicas de São Paulo. Ela acompanha há mais de 11 anos pacientes que sofreram complicações decorrentes do uso do PMMA. Há casos de cegueira, deformações graves, perda de movimentos. “Não se justifica usar preenchedores definitivos em partes moles como a face, bumbum, panturrilhas e coxas. Há evidências científicas mostrando as chances de complicações e a impossibilidade de remover completamente a substância”, diz a médica, que pertence a um recém-criado comitê de segurança da SBPC. Em 2008, ela publicou um trabalho importante na revista “Plastic Reconstructive Surgery” comprovando as consequências imediatas e de longo prazo dos preenchedores definitivos. Atualmente, a médica estuda terapias clínicas e cirúrgicas para amenizar as sequelas de pacientes que fizeram uso dessas substâncias.
A fiscalização sobre o uso desses produtos é questionável. Na determinação da Anvisa, o hidrogel, por exemplo, era até recentemente comprado em uma importadora (no momento não há nenhuma empresa fazendo a comercialização). Quem podia adquiri-lo eram clínicas, médicos e pessoas com receita. Mas a Anvisa afirma que a fiscalização sobre o uso do composto não é de sua competência. Os conselhos regionais de medicina teriam essa atribuição. Mas, novamente, cai-se aqui na confusão de quem pode ou não pode usar o produto. E os fisioterapeutas, por exemplo? Estariam sujeitos à fiscalização de quem? Não está nos planos da Anvisa a implementação de qualquer programa específico nessa área. “Não há indícios que justifiquem a criação de um programa de monitoramento de tratamentos estéticos”, acredita Leandro Pereira, gerente de Tecnologias de Materiais de Uso em Saúde da Anvisa.
A existência de um quadro como esse é extremamente preocupante, principalmente quando se sabe que a população brasileira é uma das mais vaidosas do mundo. O Brasil é o primeiro colocado no ranking mundial de cirurgias plásticas e ocupa lugar de destaque na lista dos que mais realizam procedimentos não invasivos, como aplicação de toxina botulínica (conhecida como botox) e de preenchedores de sulcos e rugas. Por isso, não surpreende constatar que um imenso contingente de mulheres – mais do que homens – esteja disposta a se submeter a intervenções arriscadas para tentar ficar mais bonita. Principalmente quando essas intervenções custam bem menos do que os procedimentos padrão. Para se ter uma ideia, um mililitro de hidrogel custa cerca de R$ 50. A mesma quantidade de ácido hialurônico sai por R$ 500.
A cultura nacional do culto ao corpo atinge até mesmo as mulheres mais jovens, que em princípio não teriam necessidade de se submeter a intervenções estéticas. Andressa, por exemplo, resolveu se submeter ao implante de hidrogel e de PMMA porque queria resultados rápidos. “Ela desejava ser assistente de palco e chegou a afirmar que não tinha tempo para malhar e então optou por essas substâncias”, contou seu assessor Cacau Oliver.
Para a psicóloga Denise Brandão, professora titular de pós-graduação em psicologia clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a procura pelo corpo ideal é uma maneira de essas mulheres lidarem com problemas emocionais como baixa autoestima ou insegurança. “Elas projetam para a aparência externa uma insatisfação interna”, diz Denise. “É por esse motivo que, depois de um procedimento estético, logo surge a necessidade de realizar outro”, explica.
Com base em entrevistas realizadas com pacientes, a psicóloga chegou à conclusão de que a felicidade experimentada após uma intervenção estética satisfatória dura em média dez meses. “Depois desse período a mulher se descobre insatisfeita com outra parte do corpo, mas nada do que ela faça em relação à própria beleza vai aplacar a angústia que sente”, diz. Esse sentimento, segundo Denise, é o que motiva muitas pessoas a recorrer a procedimentos considerados perigosos. “A dor de não ser como se deseja é maior do que a ameaça que o tratamento arriscado apresenta”, diz. “São mulheres tão inseguras e infelizes que preferem correr o risco de morrer a continuar ‘feias’”, afirma.
O combustível que alimenta esse ambiente no qual é obrigatório estar com as formas impecáveis é a adoração às celebridades – mulheres que surgem com aparência jovem e irretocável, despertando nas comuns mortais o desejo de ser exatamente como elas. “Essa indústria cria uma ilusão de que essas mulheres lindas e maravilhosas são mais felizes. Por isso muitas jovens projetam no corpo a expectativa de uma vida melhor”, diz a psicóloga. Infelizmente, porém, há casos em que se tornam tragicamente vítimas de uma vaidade que só destrói.
Fotos: Felipe Gabriel, Fábio Alves/FOLHAPRESS; Eduardo Zappia