05/12/2014 - 20:00
O governo conseguiu quase tudo o que queria. Depois de muita resistência da oposição, os partidos aliados aprovaram o texto principal da alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para evitar que a presidente Dilma Rousseff incorra em crime de responsabilidade por encerrar o ano sem cumprir a meta de superávit primário. Nem de longe, porém, o Planalto pode tratar como vitória o que aconteceu no Congresso. Desde o dia 11 de novembro, quando o projeto de mudança na LDO foi enviado ao Parlamento, a realidade das contas públicas ficou exposta e a imagem de boa administradora da presidente Dilma se esvaiu. A oposição teve argumentos para aumentar o tom das críticas e especialistas da área econômica e cidadãos que foram expulsos do Congresso durante a votação da proposta se mostraram indignados com a manobra. “O que a presidente está querendo é passar uma esponja na cena do crime”, resumiu o líder do DEM no Senado, José Agripino (RN). Foram 22 dias de fritura até o resultado da votação em uma sessão que começou na manhã da quarta-feira 3 e terminou na madrugada da quinta-feira 4.
DE JOELHOS
Após quase 19 horas de sessão, parlamentares aprovam projeto que
viabiliza a manobra fiscal e permite ao governo fechar as contas deste ano
As imagens das galerias vazias, da entrada do Congresso abarrotada de manifestantes e de policiais militares e de parlamentares exauridos física e moralmente refletem as afrontas à democracia que antecederam a votação do PLN 36. O governo agiu sem parcimônias para fazer valer sua vontade. Foi necessária a publicação de uma edição extra do “Diário Oficial da União” para assegurar a aprovação do projeto. Na sexta-feira 28 de novembro, a presidente assinou um surpreendente decreto condicionando a liberação de R$ 444,7 milhões em emendas parlamentares à autorização do Congresso para alterar a meta de superávit. Oficializou-se ali a chantagem do Palácio do Planalto ao Congresso, nunca antes tão explícita.“Hoje a presidente coloca de cócoras o Legislativo ao estabelecer que cada parlamentar aqui tem um preço”, entoou da tribuna o senador Aécio Neves (PSDB-MG).
AMEAÇA DE PAPEL PASSADO
Governo editou decreto (abaixo) condicionando uma nova liberação
de R$ 444,7 milhões para as emendas parlamentares à aprovação
da proposta que muda a meta fiscal de 2014
Constrangidos, poucos aliados ao Palácio ocuparam o púlpito do Congresso para defender a presidente. Os que se apresentaram restringiam o leque de argumentos à frase “o País não pode parar”. Apenas o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) ousou no discurso. Nos bastidores, porém, as barganhas para a aprovação do projeto surtiram efeito. Alguns esforços feitos pelo Planalto para reconciliação entre aliados que se estranhavam deram certo. De persona non grata no Planalto, o líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha (RJ), transformou-se em um valioso parceiro. Ele e a presidente Dilma mantinham há alguns anos uma péssima relação, mas, diante de uma ameaça de voto rebelde da bancada do PMDB, o deputado do Rio foi chamado e unificou os correligionários. O apoio pode ser pago com o aval de Dilma à sua candidatura à presidência da Câmara.
A fatura do Planalto com o presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL), também alcançou níveis inéditos. Renan assumiu a responsabilidade de aprovar o projeto de alteração do superávit. Quando o relator da proposta, senador Romero Jucá (PMDB-RR), cometeu o deslize de solicitar que o governo reenviasse o projeto com pedido de urgência – manobra proibida por se tratar de tema orçamentário – Renan recompôs o ritmo da tramitação com a elaboração de um calendário especial. Ou seja, longe ou próximo dos holofotes, o presidente do Congresso atuou com o desembaraço político de costume.
DESRESPEITO
Impedido de entrar nas dependências do Congresso, o povo protesta
erguendo cartazes do lado de fora, enquanto o senador
Renan Calheiros zomba dos manifestantes
Mas, ao adotar medidas impopulares, Renan sofreu reveses que podem ter manchado ainda mais sua imagem pública. O experimentado presidente do Senado errou ao não saber administrar os protestos dos manifestantes apinhados nas galerias da Câmara, na noite de terça-feira 2. Visivelmente destemperado, o senador alagoano solicitou a retirada da claque das dependências do Congresso e criou uma grande confusão. Parlamentares subiram às galerias para evitar a intervenção da polícia legislativa, o que também foi uma atitude de desrespeito com os congressistas da Mesa Diretora. Os agentes de segurança perderam a cabeça e retiraram à força uma idosa de 79 anos. Imagens mostram policiais legislativos segurando a mulher com um golpe de “gravata”. O deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) reclamou do veto à participação popular. “A galeria está quieta. Isso é deprimente”, bradou o parlamentar goiano.
O povo foi calado – e expulso do ambiente que deveria ser considerado a casa do povo – e os peemedebistas cooptados pelo Planalto optaram pelo silêncio. Muitos só decidiram votar com o governo após intensas reuniões com os líderes de bancada. No fim das contas, uma maioria de 240 parlamentares, contra 60, deu ao governo a liberdade de descumprir a meta fiscal. Mesmo massacrada pela robustez numérica da base do governo, uma combativa oposição como há muito não se via repetiu o que o PT fazia antes de chegar ao poder, mas que agora passou a condenar: o uso de todos os recursos regimentais disponíveis para obstruir a votação. Na sessão de análise de dois vetos presidenciais e da apreciação de um projeto que concede crédito complementar para a Previdência – direcionada ao fundo Aerus –, seguidos pedidos de verificação de quórum e longos discursos atrasaram a sessão. O objetivo dos parlamentares do PSDB, do DEM e do PPS era estender o debate até a manhã da quinta-feira 4 e, assim, tentar adiar a votação por mais uma semana. Prevaleceram, porém, as ameaças do governo a um Congresso subserviente e servil.
CONTRASTE
Da tribuna, o senador Aécio Neves acusou o governo de cometer
“irresponsabilidades atrás de irresponsabilidades”. Do lado de fora
do Congresso, José Sarney foi vaiado por manifestantes
Os 22 dias que antecederam a manobra que rasgou a lei de responsabilidade fiscal marcaram uma série de maus exemplos para a democracia. Pelo menos duas vezes, parlamentares da base agrediram o regimento interno do Congresso para fazer valer a vontade do governo. A Câmara sucumbiu à sua tradição de “Casa do povo” e impediu cidadãos de se pronunciarem durante a votação. Fora do Legislativo federal, a criatividade contábil do governo abriu um precedente para instâncias municipais e estaduais repetirem manobras sempre que estiverem à beira da irresponsabilidade fiscal. O aval do Congresso tira poder dos tribunais de contas estaduais e de assembleias e câmaras municipais de exigirem dos gestores respeito às diretrizes orçamentárias prefixadas.
Satisfeito o pleito imediato do governo, o Congresso postergou para a próxima semana a continuação do debate. Os parlamentares voltarão a se reunir na terça-feira 9 para votar emenda apresentada pelo deputado Domingos Sávio (PSDB-MG) que propõe teto para as despesas correntes do governo. O parlamentar restringe os gastos ao total executado no ano orçamentário anterior. A oposição conta ainda com a apreciação de mandados de segurança enviados ao STF com questionamentos sobre a manobra orçamentária do governo. Mesmo que o tribunal rejeite a iniciativa, o que é mais provável, o desgaste da imagem do governo e do Congresso já é uma realidade.
Fotos: Waldemir Barreto/Agência Senado; Sérgio Lima/Folhapress; Givaldo Barbosa/Agência o Globo, Pedro Ladeira, Alan Marques/Folhapress; André Dusek/Estadão Conteúdo; Adriano Machado/Ag. Istoé