"Abutres". Assim ficaram conhecidos os especuladores internacionais que, em 2001, apesar do risco altíssimo que corriam e das evidências do desastre que se aproximava, seguiram alimentando o cassino financeiro em que se transformara a economia argentina. Esses fundos de investimento acabaram tratados como especialistas em carniça por jogarem com papéis de uma dívida que beirava os US$ 100 bilhões, sem nenhuma perspectiva de que fosse honrada. O mundo não se surpreendeu com o calote decretado naquele ano, o maior da história. Agora, em contagem regressiva para o fim de seu segundo mandato e com a Argentina mergulhada em nova crise econômica, a presidenta Cristina Kirchner é novamente assombrada pelos abutres. Cristina esperava greves, manifestações populares e campanhas antecipadas, mas não o espectro de um novo calote.

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NA PAREDE
A presidenta Cristina Kirchner, em final de mandato,
foi surpreendida pela sentença de juiz americano
que colocou em dúvida sua credibilidade

Na semana passada, a Corte Suprema dos Estados Unidos rejeitou a apelação da Argentina contra o pagamento de sua dívida aos credores que não aceitaram as reestruturações propostas após o calote de 2001. Como de costume, a reação de Cristina Kirchner foi inflamada. Enquanto a bolsa caía, o risco-país (cada vez mais próximo do da Venezuela) disparava e uma agência de classificação de risco rebaixava notas de crédito, Buenos Aires era inundada por cartazes de repúdio aos “fundos abutres”. Em cadeia nacional de tevê, Cristina bradou contra o veredicto favorável a três fundos, inclusive o NML Capital, do bilionário Paul Singer, e 13 investidores minoritários, que, segundo ela, representam apenas 1% dos credores. “A Argentina já mostrou mais do que uma clara vontade de negociar”, disse Cristina. “Mas é preciso fazer uma distinção entre negociação e extorsão.”

O juiz Thomas Griesa, de Nova York, responsável pela sentença, considerou que Cristina “não passa confiança” e determinou que, de imediato, a Argentina quite US$ 1,5 bilhão. A decisão pode abrir precedente para que o governo argentino tenha que pagar todos os demais descontentes, chamados de “holdouts”, o que o levaria a desembolsar US$ 15 bilhões – mais da metade de suas reservas internacionais, hoje em US$ 28,8 bilhões. Griesa também exigiu tratamento igual aos investidores. Assim, o pagamento aos “abutres” deveria ser feito no mesmo dia que aos detentores de papéis da dívida reestruturada, mas a Argentina já adiantou que, apesar de seu recente empenho em honrar seus compromissos, isso não vai acontecer. Na noite da quarta-feira 18, o Ministério da Economia informou que o governo não pagaria os US$ 907 milhões correspondentes aos juros com vencimento em 30 de junho. Depois dessa data, o país ainda terá 30 dias para negociar com os investidores.

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ATRÁS DE CARNIÇA
Argentinos reagem à ameaça dos fundos estrangeiros
com cartazes que apelam ao nacionalismo

Um calote definitivo poderia prejudicar ainda mais a economia com a desvalorização do peso, a escassez de dólares, o aumento da inflação, do desemprego e da pobreza. Entre outras consequências, o Brasil sentiria reflexos da desaceleração portenha na balança comercial, sobretudo para a indústria automotiva, que tem a Argentina como maior destino de suas exportações. O Fundo Monetário Internacional (FMI) se apressou em alertar que a decisão da Justiça americana poderia ter “implicações sistêmicas mais amplas”, o que teria impactos, por exemplo, na crise da dívida soberana da Grécia. Mas, para muitos analistas, esse cenário ainda pode ser evitado. Nos últimos dois meses, a Argentina se esforçou em reconquistar seu espaço no mercado internacional de capitais. Como parte dessa estratégia, ofereceu US$ 5 bilhões à espanhola Repsol para compensar a expropriação da petroleira YPF em abril de 2012 e depois acertou o pagamento de US$ 9,7 bilhões ao Clube de Paris, formado por 19 países desenvolvidos, sem a mediação do FMI.

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Devolver à Argentina o acesso ao crédito externo seria uma grande vitória para Cristina Kirchner. “Essa é uma prioridade do governo”, disse à ISTOÉ Diego Cano, diretor da filial argentina da FTI Consulting. Entre as áreas que mais precisam de investimento externo para se desenvolver está a energética. É provável que a Argentina consiga adiar até 31 de dezembro o pagamento aos “abutres”. Nessa data, vence uma cláusula que impede que sejam oferecidas a eles condições melhores que as acordadas nas duas reestruturações anteriores, o que abre espaço para outras manobras. Quem sabe assim esses investidores aceitem um novo pacto e a Argentina, enfim, se livre dos abutres.

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Fotos: Enrique Marcarian/REUTERS; Pedro LADEIRA/AFP PHOTO