Desculpem se a citação parece lugar-comum, mas não é. O filósofo e matemático francês Blaise Pascal mostrou-se um dos mais profundos conhecedores da alma humana quando sentenciou no século 17 que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Assim não fosse, como explicar que o criminoso nazista Joseph Goebbels, ideólogo e chefe da propaganda antissemita que sustentava o totalitarismo de Adolf Hitler, tenha amado e permanecido casado por catorze anos com a judia Magda Friedländer? A revelação de que a sua mulher, segundo o abominável ideário do nazismo, era justamente a antítese da “ariana raça superior” que ele propagandeava, veio na quarta-feira 24 em entrevista do historiador alemão Oliver Hilmes (já conceituado pela biografia de Alma Mahler) ao jornal “Bild”. Em poucas horas a notícia explodia e alimentava noticiários e análises da mídia em todo o mundo.

FAMÍLIA Magda, Hitler, Goebbels e três dos seus filhos: assassinato e suicídio ao final da guerra
FAMÍLIA Magda, Hitler, Goebbels e três dos seus filhos: assassinato e suicídio ao final da guerra

As paralelas se encontraram

O fato de Goebbels dar a Magda o seu amor – e ter carregado o coração distante das geladas mãos e mente que foram cúmplices na morte de milhões de judeus em campos de extermínio – não atenua em nada a sua barbárie. Ele foi, é, e continuará sendo historicamente execrável. Mais: Goebbels é a prova de que apregoar uma “raça pura” é abominável idiotice, é a comprovação de que “raça pura” não existe. A contradição de sua existência põe nuas, no entanto, as conflituosas e pendulares reações psíquicas e afetivas que, de acordo com os médicos e psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan, algumas vezes paralisam e outras vezes movem, para o bem ou para mal, os homens e a humanidade – em palavras diversas e em diferente campo do conhecimento, os mesmos fenômenos que levaram o dramaturgo William Shakespeare, outro universal desbravador da alma, a escrever: “nada que é humano me é estranho”.

O ódio a judeus e a paixão por judias parecem ter sido retas paralelas que, negando o teorema, se encontraram em algum ponto no espaço da vida de alguns nazistas. Hitler, por exemplo, enamorou-se de Stephanie Isak. Aos amigos, dizia: “sem essa judia, me mato”. Até aí, suicidar-se era problema dele, e teria poupado o mundo de sua existência se na juventude houvesse consumado o ato. Louco, porém, é que Hitler propunha colocar fim à vida afogando-se juntamente com Stephanie. A moça o mandou às favas. Goebbels, por sua vez, sempre declarou não “mero desejo” mas “profundo amor” por Magda, cuja origem semita é agora comprovada por meio de uma carta localizada por Hilmes. Nela, o judeu Richar Friedländer declara: “Magdalena nasceu a 11 de novembro de 1901 e é minha filha carnal”. Há, de fato, diferença entre as motivações de Goebbels e de Hitler. O chefe da propaganda nazista desposou Magda (em primeira núpcia a moça se casara com o magnata Günther Quandt, cujos descendentes até hoje são donos da marca BMW), construiu com ela uma família de seis filhos em quase duas décadas, e juntos se suicidaram (após matarem as crianças) quando o exército soviético entrou em Berlim em 1945 ao final da Segunda Guerra Mundial. A ciência da história, que por essência e metodologia se remete ao passado, ganha ainda mais força quando pode se prestar à análise do presente – e, quem sabe, alterar comportamentos para que erros de ontem não se repitam nos dias atuais.

MACEDÔNIA Semelhança com campos nazistas ou com “L’Étranger”, de Camus, não é mera coincidência
MACEDÔNIA Semelhança com campos nazistas ou com “L’Étranger”, de Camus, não é mera coincidência

Assiste-se hoje em diversos países ao retorno do nacionalismo exacerbado, do absurdo preconceito e da burra intolerância, do repúdio ao imigrante, do asco aos depauperados que buscam um chão, que não o seu, no sonho de paz, trabalho e pão. Assiste-se, enfim, à muita gente considerando-se mais “raça pura” em relação às demais nacionalidades. Recentemente, as fronteiras da Macedônia fizeram supor que cada ser humano é um atônito, sofrido e renegado Meursault, clássico personagem de Albert Camus em “L’Étranger” (completam a trilogia “Le mythe de Sisyphe” e “Calígula”). Em muitas nações a situação é a mesma, e todo o movimento vitorioso (vitorioso?) do Brexit, no Reino Unido, e os quase oito milhões de sírios que buscaram refúgio em países vizinhos são significativos indicadores de que as coisas não vão bem. Sob os nossos olhos está também a radical política de imigração instaurada pelas autoridades da Dinamarca, com total apoio da população, que defende o confisco de pertences de quem se refugia no país (os nazistas extraiam dentes de ouro dos judeus). Em meio à essa conjuntura (reacionária porque preconiza a história andando de ré), talvez agora alguém que se julgue “raça pura” lembre-se da história de Goebbels e Magda. Raça pura e superior? Pois é, odeie alguém por questão racial e verás: não há saída de emergência se teu afeto e teu coração balançarem por esse mesmo alguém…

Desde Hitler, a tese de “raça superior” é abominável.
A história de Goebbels, que casou com uma judia,
pode ajudar a derrotar a xenofobia em alguns países

No Brasil, estamos a nos despedir de uma competição olímpica, não com o pescoço arcado devido ao peso de muitas e muitas medalhas mas, com certeza, com a cabeça erguida devido a leveza da excelente hospitalidade. O brasileiro sempre deixa saudade como anfitrião, e não foi diferente no Rio de Janeiro. Essa virtude vem na contramão da irracionalidade que estratifica genes; vem, isso sim, da miscigenação que é um dos mais marcantes traços da identidade nacional, traçada magistralmente pelo sociólogo Gilberto Freyre em “Casa-grande & Senzala” (1933) e “Sobrados e Mucambos” (1936). Miscigenação que tanto bem nos fez e nos faz, e que para cá foi trazida pelo colonizador português que “tinha em seu sangue séculos de integração genética” com ancestrais celtas e romanos. Santa miscigenação, abençoada pelo padre jesuíta Manoel da Nóbrega quando em 1550 ele escreveu ao rei João III pedindo que o reino enviasse para cá “muitas mulheres de toda qualidade, até meretrizes”. Um ano depois, Nóbrega novamente escreve, dessa vez narrando que já se podia falar em “primeiras brasileiras”: eram mulheres nascidas de ventre de escravas engravidadas pelos portugueses (as mamelucas). Segundo outras missivas, esse “encontro” daria ao Brasil “frutos de boa população abençoada por Deus, e na qual ninguém se imaginaria melhor do que ninguém”. Quando o padre escreveu isso, com certeza um anjo passou sobre ele – e disse amém.