Aos 85 anos, o jurista paulista Modesto Carvalhosa associou-se aos colegas Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias para lançar, na semana passada, o que considera ser a saída para a atual crise política do País. Em um documento intitulado “Manifesto à Nação”, os três propõem a convocação ainda neste ano de uma Assembleia Constituinte. O objetivo é promover mudanças na Constituição que resultem na reforma dos sistemas político e administrativo nacionais. Entre elas, estão o fim do financiamento público de campanhas eleitorais, a proibição das coligações partidárias e a equiparação trabalhista e previdenciária entre os trabalhadores das empresas privadas e os servidores públicos. Conhecido por seus estudos sobre corrupção – tem dois livros a respeito do tema -, Carvalhosa entende que uma nova Constituição baseada em preceitos como esses seria uma forma de reconciliar a sociedade brasileira com suas representações. “A Constituição diz que todo poder emana do povo. Mas o poder que está no Brasil não representa o povo”, disse na entrevista à ISTOÉ.

Por que os senhores propõem uma Assembleia Constituinte neste momento?

Temos que fazer uma mudança da estrutura política e administrativa do País. Não adianta mudar apenas as pessoas. É preciso modificar o sistema político-eleitoral e os privilégios da administração pública. Como afirmamos em nosso manifesto, os escândalos dos quais estamos sendo testemunhas provam que o sistema político-constitucional vigente é inviável. É única maneira de acabar com privilégios que a Constituição de 1988 outorgou aos partidos políticos, aos parlamentares e aos servidores públicos.

Quais seriam as mudanças?

Os partidos não representam o eleitorado. Só seus próprios interesses. Defendemos a eliminação do Fundo Partidário e do financiamento público das eleições. Os partidos têm de ser bancados por seus próprios membros. Devem parar de mamar no governo. O esquema que temos hoje explica em parte o que estamos vivendo. Trata-se de um problema estrutural. Qualquer pessoa que seja eleita vai se aproveitar desses pontos para reafirmar os mesmos vícios.

Os senhores sugerem uma ampla reforma política?

No âmbito eleitoral, é necessário fazermos diversas mudanças. Devemos acabar com o foro privilegiado e com a desproporção de representação dos estados. Eles precisam ter na Câmara Federal deputados em número proporcionais ao de seus eleitores. Hoje há uma falta de proporção monumental.

As alterações incluiriam o voto distrital?

Sim. Falamos do voto distrital puro, com cada deputado representando o seu distrito. Além disso, os parlamentares não podem votar em causa própria, como decidir seus aumentos de salários. Quando precisarem fazer isso, deve haver o referendo da população. A reforma incluiria a proibição de que deputados e senadores exerçam cargos na administração pública. Tem que acabar com isso.

Por que os senhores defendem também o fim das emendas parlamentares?

Os congressistas ganham milhões para financiar obras nas suas bases eleitorais. Ficam sócios do orçamento e não seus fiscais. Isso é uma enorme distorção. Há outro ponto importante que necessita ser revisto. As coligações partidárias precisam acabar. Elas servem para que os partidos vendam seu tempo de televisão nas campanhas eleitorais.
Hoje esse tempo é dividido de acordo com o tamanho da bancada de cada partido. Uma reforma constitucional contemplaria esse item também?
Sim. Queremos distribuição igual de tempo por partido. Assim todos falam e têm tempo para expor suas ideias. A respeito dos programas eleitorais, propomos também o fim dos efeitos de marketing nas propagandas, que devem ser destinadas para que o candidato divulgue seu programa e rebata eventuais críticas. Sem esses truques de marketing que são feitos hoje.
Quais as alterações nas esferas social-administrativa que estariam na pauta da Constituinte?
É preciso ter igualdade trabalhista e previdenciária entre os setores públicos e privados. O fim da estabilidade para os servidores do Estado é fundamental para isso. Só devem usufruir desse direito os integrantes das Forças Armadas, do Poder Judiciário e do Ministério Público. Veja a situação em que estamos: dos 13 milhões de desempregados que existem hoje no Brasil, todos são do setor privado. Isso é uma injustiça social brutal. Há uma casta de privilegiados.
Mudar o regime trabalhista/previdenciário de servidores públicos incluiria que outras medidas?
Acabar com cargos de confiança e com os supersalários estão entre elas. Não pode haver essa coisa de salário direto ou indireto, mordomias, auxílios, benefícios. O servidor que se vire para pagar sua passagem de avião, por exemplo, e remunerar seus próprios funcionários. Hoje cada senador tem 55 assessores.
Da sua promulgação, em 1988, até hoje, a Constituição foi modificada por 95 emendas. E, segundo os senhores, há em tramitação mais de mil novos projetos de emendas. Por que não se discutir as propostas já existentes em vez de convocar uma nova Constituinte?
Essas emendas são pontuais e não levarão às alterações das quais necessitamos. Uma Assembleia Constituinte é a única maneira de fazermos uma mudança política e social-administrativa de impacto. Se o sistema continuar como está, tudo será do mesmo jeito. Outros corruptos serão eleitos no lugar desses que estão aí.
Alguns especialistas criticam a proposta de convocação de uma Constituinte. Dizem que a Constituição vigente oferece as proteções legais necessárias. O que seria preciso é respeitá-la e não reformulá-la.
Ela foi feita em época especial, que era o fim de um regime de exceção (ditadura militar, de 1964-1985). Ela ajudou a estabelecer valores democráticos. Mas criou uma democracia corporativa e não representativa, dando privilégios para os políticos e servidores públicos. Hoje temos um País dividido. Cada Constituição deve servir a uma época.
A realização de uma Constituinte no meio de um processo em andamento de proposição de reformas – previdenciária e trabalhista – não atrapalha ainda mais o já complicado cenário econômico nacional?
De certa maneira, as reformas já estão desaprovadas. O Congresso não representa mais nada. As diretrizes de aprovação das mudanças estão em perigo porque não existe interesse público dos parlamentares. Eles querem mais é se salvar.
O sr. acredita que as instituições estão assim tão frágeis?
As instituições estão destruídas. Tanto o Congresso Nacional quanto o Poder Executivo. Há total falta de legitimidade. O Supremo Tribunal Federal determinou a abertura de inquérito contra oito ministros. O governo não representa a população e a Constituição diz que todo poder emana do povo. Mas o poder que está no Brasil não representa o povo.
Na sua opinião, nada mudou com a saída da ex-presidente Dilma Rousseff, há um ano, e sua substituição pelo presidente Michel Temer?
O esquema de corrupção organizado pelo PT foi desmontado, mas a idoneidade do governo não foi restabelecida. Novamente: temos oito ministros contra os quais há pedido de abertura de inquérito. Eles não têm probidade nenhuma. Isso demonstra que o PMDB é o partido permanente do atraso brasileiro. Tivemos treze anos de desastre com um partido que confundia o Estado consigo próprio. Foi um desastre bolivariano. Agora, com o PMDB, há um clientelismo estrutural. A saída do PT foi saudável, mas temos necessidade de mudança.
As alterações seriam suficientes para que a sociedade retome a confiança nas instituições políticas?
O povo brasileiro está desiludido. A população tem repugnância pelos políticos. A desilusão é de tal maneira que se houvesse um golpe militar, por exemplo, o povo estaria pouco se lixando. Isso é um risco imenso para tudo o que conquistamos. Por isso a necessidade de uma Constituinte. Precisamos de uma nova Constituição.
Como é o processo de convocação da Constituinte que os senhores sugerem?
Está amparado em um lei de 1998. Um plebiscito deve ser convocado por iniciativa de um terço dos deputados ou dos senadores e aprovado por maioria simples dos membros da Câmara ou do Senado.
O que a população decidiria no plebiscito?
Pela convocação de uma Assembleia Constituinte integrada por quem não exerce cargo político ou por uma formada pelos parlamentares. Defendemos que seja uma Assembleia independente, com gente de fora do ambiente político. Terminado o trabalho, nenhum deles pode se candidatar nos oito anos seguintes. Um abaixo-assinado exigindo o plebiscito está disponível.
Sua proposta encontra alguma repercussão no Congresso Nacional?
Temos algumas interlocuções com representantes de alguns partidos, como a Rede. Mas são muito pontuais. O Congresso está procurando se salvar e não salvar o País. Nós, da sociedade civil, temos que apresentar ideias positivas. Não adianta ficar só reclamando. A crise é muito profunda.
O sr. é um estudioso da corrupção. O teor das delações dos ex-executivos da Odedrecht, divulgado há duas semanas, chegou a surpreendê-lo?
De modo algum. Temos atualmente um País em que os políticos estão ali só para ganhar dinheiro, vender leis. É um mercado comandado por uma gangue. Como estão hoje, a Câmara e o Senado são organizações criminosas.
Por que o sr. critica os acordos de leniência firmados com as empreiteiras flagradas na Lava Jato?
A lei anti-corrupção é clara ao determinar que o acordo vale para a primeira empresa que denunciar o mecanismo do cartel. Se todos denunciarem a mesma coisa, em vez de ser acordo vira um mero Termo de Ajustamento de Conduta das empresas.
Os partidos políticos envolvidos podem ser penalizados de alguma forma?
A legislação contra a corrupção é voltada para pessoas jurídicas. Os partidos políticos são entidades jurídicas de direito privado. Eles têm que ser punidos tanto quanto as empreiteiras corruptas.