Uma política repressiva cara e ineficiente que prioriza o combate aos “microtraficantes” e não afeta o mercado bilionário das drogas. Essa é a avaliação do doutor em Direito Penal pela USP e ex-secretário Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça Luiz Guilherme Paiva sobre o cenário brasileiro quando a Lei de Drogas completa 10 anos.

Em entrevista, ele comentou sobre a dura realidade de como o tema é tratado no País e a necessidade de mudar a forma repressiva com a qual a administração pública e o próprio Judiciário lidam com o problema das drogas.

Quais os avanços que a Lei de Drogas trouxe?

O grande avanço simbólico da Lei de Drogas foi dar mais ênfase nos aspectos não jurídicos da política de drogas, consolidando a posição de que a questão não seria tratada apenas pela via do direito penal. Ao dedicar grande espaço à políticas de prevenção, tratamento e reinserção social, deixou claro que se trata de uma política complexa, que depende de ações amplas de responsabilidade compartilhada entre toda a sociedade. Ela é bastante avançada em alguns aspectos que, ainda hoje, são inovadores em legislações da região, como por exemplo o reconhecimento de políticas de redução de danos como uma das modalidades de cuidado. Mesmo assim, a novidade mais lembrada foi a chamada “despenalização” do porte de drogas para uso pessoal, em que a conduta seguiu sendo considerada crime, mas sujeita a penas alternativas à prisão.

Em quais aspectos ela ainda deixa a desejar e por quê?

A lei buscou marcar uma diferença significativa entre “usuários” e “traficantes”. Ao analisarmos os debates parlamentares da época, verificamos que os deputados e senadores quiseram aumentar a repressão aos traficantes quase como uma compensação por tornar a lei mais branda aos usuários. Então o porte de drogas para uso pessoal não prevê mais a pena de prisão, mas a pena para o tráfico aumentou consideravelmente. Claro que isso não aconteceu só no Brasil, esse aumento seguiu uma tendência na América Latina. Mas, especialmente pela dificuldade de se estabelecer a diferença entre “usuário” e “traficante”, o número de pessoas presas por tráfico aumentou de maneira brutal. Assim, a expectativa em 2006 era de um afastamento da política de drogas de seu aspecto jurídico-penal. Na prática, o que aconteceu foi justamente o oposto.

Qual a maior dificuldade em diferenciar, nos tribunais, o usuário do traficante e por quê?

A própria lei tem dificuldades em estabelecer a diferença entre “usuário” e “traficante”. Os critérios são sempre muito subjetivos. Na prática do nosso sistema de justiça, essa distinção se dá de forma seletiva e que reforça desigualdades. Há diversos casos em que o simples fato de a pessoa morar em uma comunidade supostamente dominada pelo tráfico é o bastante para que um porte de drogas vire uma associação para o tráfico, com penas altíssimas. As pesquisas que analisam o perfil das pessoas presas em flagrante por tráfico mostram que são, em sua imensa maioria, pessoas jovens, negras, que foram presas sozinhas, desarmadas e com quantidade ínfima de droga. Esse é o perfil do “traficante” que está nos cárceres brasileiros. No fim das contas, movemos uma estrutura policial e judicial caríssima que não consegue atingir o cerne do problema. O que chamamos de “economia da droga” é um mercado bilionário, que envolve redes de produção e distribuição de drogas e um fluxo enorme de dinheiro. Mas nosso sistema se preocupa essencialmente com a ponta mais frágil desse mercado, que são os microtraficantes. A prisão de centenas de milhares de microvarejistas, que é o que fazemos hoje, não afeta em absolutamente nada esse grande negócio. A situação é ainda mais grave no que diz respeito às prisões femininas. Mais de 60% de todas as prisões de mulheres são por tráfico de drogas. Há uma frase que resume bem a situação: nossa política criminal sobre drogas é forte com os fracos e fraca com os fortes.

Como mudar a mentalidade da administração pública e do próprio Judiciário ao lidar com o usuário e com o traficante?

A dificuldade de atuação da administração pública e do sistema de Justiça decorre exatamente do fato de que, atualmente, os indicadores de sucesso da política de drogas são basicamente repressivos: quantidade de droga apreendida, número de pessoas presas por tráfico, etc. Entendo que é preciso desenvolver novas formas de avaliar essa política pública, criar indicadores focados na saúde e no bem-estar da população. Por exemplo: redução do número de pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas; que nossos jovens optem por não usar drogas, ou, se o fizerem, que seja mais tarde; que pessoas que desenvolvam problemas decorrentes do uso de drogas tenham acesso a tratamento adequado, e assim por diante. Com isso, ficará mais fácil para o Judiciário e para o Ministério Público se conscientizarem que o padrão atual reforça o problema ao invés de resolvê-lo. Precisamos dar segurança para que o sistema de Justiça mude sua forma de atuação, sabendo que o resultado dessa mudança será positivo para a sociedade.