“E nessa loucura de dizer que não te quero, vou negando as aparências, disfarçando as evidências, mas pra que viver fingindo, se eu não posso enganar meu coração?” Há quem discorde, mas a canção Evidências, de Chitãozinho e Xororó é o hino oficial dos karaokês brasileiros. Ao lado dela, uma onda de bandas e canções marcou, particularmente, os anos 1990. E é do palco do Domingo Legal que algumas delas serão tocadas em Playground, espetáculo da companhia Poleiro do Bando, que estreia nesta sexta, 22, no Teatro Alfredo Mesquita.

Se a música sertaneja e o pagode romântico cumpriram a missão de purgar a dor causada por relacionamentos complicados, ou por uma paixão não correspondida, a peça abre a história antecipando uma tragédia: no fim, ela morre. Ela quem? Na narrativa, dois casais viajam juntos, mas não se sabe se são homens ou mulheres.

Essa é a intenção do diretor Pedro Stempniewski e a explicação pode estar no repertório do grupo. No início do mês, a companhia iniciou uma ocupação artística com a estreia de Família Formigueiro Casa Condomínio, um espetáculo infantil que discute questões de sexualidade e gênero. Esta, a montagem mais recente do grupo, foi fruto do desejo de estender o tema, já tratado com os adultos, para as crianças. Já na primeira peça, Tão Pesado Quanto o Céu, o tema balizava a história de dois homens que conversavam sentados em balanços.

O importante a se dizer é que em Playground a companhia vai na contramão de discutir nominalmente os muitos rótulos que designam a sexualidade – recentemente, a comissão de direitos humanos de Nova York reconheceu 31 tipos de gêneros – termos que, muitas vezes, dificultam a compreensão do essencial. “Coloquei duas atrizes no palco, que se revezam para narrar a conversa desses dois casais”, explica Stempniewski sobre Monique Maritan e Stella Garcia. Ao lado delas, a iluminadora Junia Magi e o músico Bruno Avoglia também participam das cenas. No texto, os personagens não têm nome nem falam palavras que indiquem se são homens ou mulheres. “O que se sabe é que eles têm uma inspiração artística, são músicos, escritores e fotógrafos”, diz o dramaturgo Ricardo Inhan. “O objetivo é imaginar as possibilidades a partir do que eles falam”, acrescenta o diretor.

Mas há algo para se ancorar: as músicas dos anos 1990. Inicialmente, o dramaturgo escreveu os diálogos pensando em personagens heterossexuais nascidos entre os anos 1985 e 1990, a tal Geração Y. Junto dela, há uma cultura pop e musical específica. “Trata-se de uma faixa etária um tanto perdida, que muda de carreira constantemente, e sonha com um trabalho que a preencha mais do que um emprego que pague suas contas”, atesta o dramaturgo.

Diante desse perfil, a companhia buscou, sem muito sucesso, estudos sobre as características da Geração Y. “O que encontramos era mais dedicado ao ramo da economia e trabalho, na maneira como esses jovens se comportam no mundo profissional. Não havia muito coisa sobre o comportamento amoroso e com os amigos”, acrescentou Stempniewski. Alfabetizados com o videogame e o computador, essa turma multitarefa não seguiu a tradição de seus pais, que se tornaram especialistas em determinada área, explica o diretor. “Ele querem ser muita coisa, e acabam apresentando pouco.” O mergulho da companhia foi, então, para dar conta das informações insuficientes. A agilidade no trato com máquinas também se estendia para o amor?

Na peça, os diálogos buscam refletir sobre um certo desencontro e insensibilidade. A narrativa fragmentada foca no comportamento afetivo desses jovens, que já beiram a vida adulta. “Eles ainda retêm uma herança do amor romântico, mas tão rápido como as coisas acontecem, elas também se esfacelam”, diz o diretor. “É a geração do Tinder”, diz Stella, sobre o aplicativo de encontros. “As pessoas se tratam de um jeito mais descartável. Quando o outro deixa de servir para os seus desejos, você dispensa.”

As brincadeiras de rua da época da infância e sons de jogos eletrônicos retornam no palco para ressaltar o caráter infantil dos personagens. “De alguma forma, esses jogos continuam com eles, para guiar nos relacionamentos”, conta o diretor.

Se arranhar o joelho era, no máximo, o saldo de uma partida emocionante de corre-cotia, na vida adulta o jogo é muito mais arriscado. “Os personagens vivem em uma aparente libertação sexual, saindo entre si, para provocar o outro”, diz Stempniewski. “Mas há um componente perigoso: o ciúme e a obsessão de um deles”, aponta. Para o diretor é importante sinalizar que uma personagem feminina morre no fim. “É preciso denunciar os assassinatos de mulheres no Brasil. Ainda mais quando ocorrem dentro de relacionamentos, ficando caracterizados como crime passional, o que livra a consciência do assassino.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.