Por mais talentoso que tenham sido, Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) viveram quando ainda não se falava em gênios da música. A genialidade era então algo que se possuía. Com Ludwig van Beethoven (1770-1827) nasceu uma nova ideia: a de que uma pessoa pode ser um gênio — e Beethoven encarnou esse papel melhor que qualquer outro compositor. Sua música é o apogeu de uma evolução iniciada no Renascimento e reúne qualidades excepcionais que perduram dois séculos após sua morte. As sinfonias, concertos e sonatas que ele compôs definem a essência de uma obra-prima.

VIDA E OBRA Retrato do compositor (à esq.) e a capa do livro: doze anos de trabalho
VIDA E OBRA Retrato do compositor (à esq.) e a capa do livro: doze anos de trabalho

“Gênio” e “obra-prima” são os lugares-comuns para evocar a personalidade e a música de Beethoven. Por isso mesmo é notável que o autor Jan Swafford evite os dois termos de forma quase obsessiva nas quase mil páginas da biografia “Beethoven: Angústia e Triunfo” (Amarilys), que entra em pré-venda nesta semana. Compositor, professor de música na Universidade Harvard e elogiado pela biografia que escreveu de Brahms, Swafford dedicou doze anos ao livro. Nele há não apenas um retrato do compositor mais célebre da história como um mergulho no ambiente sócio-cultural que permitiu sua existência.

Da maçonaria aos misteriosos Illuminati, dos bastidores da corte durante o Sacro Império Românico Germânico à controvertida figura de Napoleão Bonaparte e sua influência sobre o imaginário de Beethoven, o leitor é recompensado com uma aula de história da Europa em um de seus momentos mais ricos. Ludwig van Beethiven nasceu em Bonn quando ainda não havia Alemanha. Em sua infância, o Iluminismo produziu a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos. Entre os alemães, o movimento daria luz à Aufklärung, corrente filosófica de racionalista defendida por Immanuel Kant. A literatura ganhava Goethe e Schiller, de quem Beethoven mais tarde musicaria o poema “Ode à Alegria”, o trecho cantado da Nona Sinfonia que celebra a felicidade como o objetivo da vida.

Por mais familiares que sejam o folclore em torno de Beethoven, como a surdez no final da vida, o sujeito que emerge do livro é extraordinário, ainda que duro. Avesso tanto às pessoas quanto aos cuidados básicos de higiene (a ponto de ir sujo à escola), ele dedicou a vida a desafiar os limites de sua arte. Influenciado por Mozart, com quem se encontrou ainda adolescente numa viagem a Viena, foi um prodígio na infância e um compositor obstinado até a morte.

“Ele força todos os limites, incorpora suas referências ao fazer tudo ser mais: mais intenso, mais pungente, mais decidido e dramático”, afirma Seafford. Em busca de transcendência, Beethoven elevou a música ocidental ao ápice, consolidando-a como a mais sublime forma de arte de sua era, o romantismo.

“Beethoven ascendeu no mundo não porque cortejava os grandes, mas por causa de seus dons (...) e uma ambição incansável” Jan Swafford, autor de “Beethoven”
“Beethoven ascendeu no mundo não porque cortejava os grandes, mas por causa de seus dons (…) e uma ambição incansável” Jan Swafford, autor de “Beethoven”

O livro mostra como isso ocorreu analisando as obras de Beethoven os acontecimentos que impactaram cada período de sua vida. “O século XIX estava envolvido não em olhar para um fim, mas em desejar o delírio e a dor do desejo em si”, escreve
o autor em seu estilo rebuscado. Apesar das inúmeras qualidades, “Angústia e Triunfo” pode não agradar a todos. Por ser compositor, Jan Swafford domina a terminologia musical de um modo que não pode ser exigido do leitor. Algumas páginas têm trechos de partituras.

UNIVERSAL

“Ideologias tidas como ‘democráticas’, ‘comunistas’, ‘socialistas’ e ‘nazistas’ reivindicaram a Nona como sua. Ela seria exaltada por tiranos e celebraria a queda de tiranias (…) Tudo isso é o que Beethoven esperava e, em algum nível, até previa. Se quisermos conceber algo na direção de uma obra de arte universal, aqui está”, afirma o autor em uma passagem esclarecedora.

Colocado ainda em vida sobre um pedestal de semideus do qual jamais sairia, antes de morrer Beethoven tinha preocupações bem mais humanas: seu próximo trabalho, a doença, o dinheiro. Morreu num estado de saúde tão precário que a causa jamais foi esclarecida (havia suspeitas de cirrose, sífilis e envenenamento). Como pouquíssimos, pode ser chamado de gênio Talvez
o maior da música.