Na música, como na vida, a liberdade é algo que se conquista. As bases são oferecidas pela partitura. De um lado, a forma. De outro, o conteúdo. Entre eles, o intérprete, ciente de ambos. “E, ainda assim, é preciso saber como articulá-los, ou melhor, qual o papel que você desempenha nessa combinação de elementos”, diz o pianista, que logo acrescenta um outro problema na mistura. “No caso de Beethoven, há uma evolução constante e então o questionamento é ainda maior.”

Não são necessários mais do que alguns minutos de conversa para que o pianista norueguês Leif Ove Andsnes fale daquilo que busca como intérprete. O assunto, naturalmente, é Beethoven – e não apenas porque a Sonata n.º 18 do compositor integra os recitais que ele apresenta nesta terça, 23, e quarta, 24, na Sala São Paulo, pela temporada da Cultura Artística: o músico embarcou nos últimos anos no projeto Beethoven Journey, dedicado à interpretação e à gravação dos seus cinco concertos para piano e orquestra, atuando como solista e regente, à frente da Mahler Chamber Orchestra.

O desejo de controle sobre todo o processo de interpretação – registrado em um documentário de Phil Grabsky, que o acompanhou durante três anos – nasceu da percepção de que era hora de enfrentar os cinco concertos, tipo de Everest para qualquer pianista, e de oferecer leituras que pudessem ao mesmo tempo resgatar as propostas originais do compositor e estabelecer uma relação pessoal com elas. Uma percepção – ou “epifania” – que se revelou a Andsnes durante uma viagem a São Paulo. “No elevador do hotel em que eu estava hospedado, tocavam sempre trechos do primeiro e do segundo concertos, em looping. Eu achei, no começo, que ia enlouquecer, mas aconteceu o contrário: ouvir os fragmentos daquela música me fez perceber quanto ela era genial”, ele conta.

Dos fragmentos ele partiu, então, para o todo. Foram três anos de turnês intensivas com a Mahler Chamber Orchestra. E, ao longo do processo, ele começou a sentir, enfim, a conquista da liberdade. “Você se dá conta de que, se há um arco que une os cinco concertos, há também uma enorme diversidade na maneira como forma e conteúdo se articulam. Perceber isso e mergulhar nessas diferentes propostas nos põe em contato direto com a proposta dessa música, com aquilo que motivou Beethoven a escrevê-la. E então você, aos poucos, começa a encontrar a liberdade na hora de tocar, começa a entender onde e como você se coloca neste processo”, ressalta.

Diálogos

Andsnes é um dos principais intérpretes de sua geração. Começou a carreira no fim dos anos 1980, com 17 anos, e, desde a época, tem se dedicado a projetos que revelam um pouco do modo como lida com o repertório. Em Pictures Reframed, por exemplo, investigou – em concertos, um CD e um livro – as relações entre música e artes plásticas por meio dos Quadros de Uma Exposição, de Mussorgski. A dedicação a Schumann e Schubert o levou também a trabalhar com canções, ao lado do tenor Ian Bostridge. Pelas canções, também se voltou a Edvard Grieg, ajudando a uma maior compreensão de um compositor cuja fama deveria ir bem além de seu concerto para piano.

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A liberdade – ou a busca dela – talvez seja um dos aspectos mais marcantes do trabalho do pianista. Não apenas na maneira como se aproxima dos compositores que interpreta, mas na forma como organiza o programa dos seus recitais. As apresentações em São Paulo são prova disso. Ele começa com a Sonata n.º 18 de Beethoven, apelidada de “A Caça”; em seguida, toca uma seleção de peças de Jean Sibelius, como o Romance op. 24 n.º 9 e os Improvisos op. 5 n.º 5 e n.º 6. Na segunda parte, Debussy, com Estampes; e Chopin, com a Balada op. 38 n.º 2 em fá maior, o Noturno op. 15 n.º 1 em fá maior e a Balada n.º 4 op. 52 em fá menor.

Quando apresentou este mesmo programa em novembro do ano passado, em Nova York, Andsnes fez o crítico Anthony Tommasini, no New York Times, refletir sobre a própria essência de um recital para piano solo, evocando Liszt (o criador do formato) e a proposta de se narrar uma história por meio das peças selecionadas – no caso, peças que a princípio causariam estranhamento colocadas lado a lado.

“É uma jornada sonora que busca tanto o contraste quanto o diálogo pouco usual”, explica o pianista. “A música de Sibelius é muito pouco conhecida, não apenas pelo público europeu ou americano, mas mesmo no mundo nórdico. Conhecemos sua música para orquestra, em especial as sinfonias, ou então o concerto para violino. Mas sou fascinado pela música que escreveu para piano. É um conjunto irregular, sem dúvida. Mas quando se olha com cuidado, acabamos descobrindo verdadeiras pérolas. Ele trabalha as cores do piano de forma orquestral. Não como Chopin, em quem tudo parece vir de maneira bastante natural. É preciso buscar suas ideias e, então, você descobre música extremamente assombrosa”, ele explica. Com Debussy e Chopin, a proposta é outra. Há a naturalidade no modo como ambos trabalham ao piano. “Mas é interessante perceber os jogos de influência de Chopin sobre Debussy, pois eles revelam algo sobre a própria natureza do som.”

LEIF OVE ANDSNES

Sala São Paulo. Praça Júlio Prestes, 16, Luz, tel. 3367-9500. 3ª e 4ª, às 21h. R$ 175/ R$ 235.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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