PAULINHO DA VIOLA, sambista

Os olhos de Jacob do Bandolim diziam tudo. Eles atingiam a alma de Paulinho, moleque magro e encurvado de tão tímido, filho do violonista Cesar Faria, doido para entrar no mundo dos gigantes. Jacob sabia do fascínio que exercia sobre o projeto de sambista que não saía do seu lado. Sentados ali em silêncio, lado a lado, olho no olho, Jacob afinava o bandolim que, um dia, seria a paixão de Paulinho da Viola.

Aos 73 anos, Paulinho está mais uma vez em São Paulo. Vai se apresentar nesta sexta (24), sábado e domingo, no Teatro Net, ao lado dos filhos João Rabelo, violonista, e Beatriz Faria, cantora. Não há disco novo há quase 15 anos, o que o deixa livre para fazer um generoso desfile das campeãs no repertório e solto para refletir ao jornal O Estado de S. Paulo, por telefone, sobre samba, choro, timidez, tempos modernos e um professor bravo e exigente chamado Jacob do Bandolim.

Na música 14 Anos, você canta a história do pai que não quer o filho no samba. Seu show tem agora dois de seus filhos no palco. O que dizer a eles?

Olha, era um tempo diferente. Mesmo grandes artistas, como Jacob do Bandolim, eram músicos que tinham outras profissões. Jacob e meu pai, por exemplo, eram funcionários da Justiça. Era muito comum ouvir dizerem a um músico: “Olha só, é melhor você fazer um serviço público”. Mas, quando fiz um dos meus primeiros sambas, 14 Anos, eu não estava me referindo a uma experiência pessoal. Meu pai nunca disse aquilo que a música diz (“…perguntou-me se eu queria, estudar filosofia, medicina ou engenharia / Tinha eu que ser doutor”).

Muitas pessoas dizem que Jacob do Bandolim foi um homem bravo, exigente, mal-humorado. Você, ali ao lado dele, adolescente, não sentiu medo?

Jacob era alto, tinha um vozeirão e, claro, inspirava um certo medo. Era muito direto, às vezes brincalhão, mas muito mais austero. Havia aquele rigor de não poder errar quando se estava ao lado dele e muitas vezes ele fazia algo que era afinar o bandolim olhando fundo nos meus olhos. Ele gostava que eu ficasse ao lado. Um dia, tomei um susto: estávamos em Paquetá passando alguns dias quando ele pegou um encordoamento novo, me chamou e pediu: “Você pode trocar as cordas pra mim?”. Imagina eu com 16 anos trocando as cordas para o Jacob do Bandolim. Procurei caprichar, lembrei de como meu pai fazia, e devolvi o instrumento. Eu ganhei aquele dia.

Há uma frase sua que marcou: “Eu não vivo no passado, mas o passado vive em mim”. Mas a relação de sua geração com o passado pode não ser a mesma relação que os jovens de hoje têm com o passado, que vocês criaram nos anos 1960 e 70. Essas décadas se firmam como uma espécie de ‘passado atual’, futurista, eterno. Difícil para eles não viverem nesse passado…

Isso merecia uma análise aprofundada. Vivemos hoje um tempo diferente, com uma quantidade absurda de informação. Nos anos 90, quando começaram os celulares e computadores, eu disse que não teria a menor possibilidade de acompanhar esse ritmo. Vou ficar mais velho e ter menos capacidade ainda. Havia alguns consensos nos anos 60 e 70 de que algumas coisas eram um desastre, como a Guerra do Vietnã. Aí surgem os Beatles, os Rolling Stones, o Brasil vive o estado de exceção, depois o de repressão, a censura, e os artistas reagem. Grande parte da minha geração começou em festivais, a nossa maior janela. As épocas são muito diferentes. Hoje em dia, quase não há mais gêneros musicais definidos, as pessoas misturam ritmos, usam elementos de todo jeito.

E será que é tão bom isso? Não vamos começar a perder as referências?

Eu também pensei isso por um tempo, mas acho que mesmo com essa quebra, as formas de tudo o que foi construído renderam muitos talentos. As pessoas querem inventar algo novo, marcar presença, às vezes mesmo dizendo algo que já foi dito, mas elas têm esse direito. E o samba, nesse meio todo, não desapareceu.

Interessante isso, pensar que um ritmo que nunca teve sua história no currículo de escolas públicas, que sofreu perseguição de Estado e que foi discriminado corte 100 anos de história como a mais importante expressão popular de um país desse tamanho. Parece um milagre.

É a força de uma corrente que começou a ser formada por artistas populares negros do fim do século 19. E pelo povo, que passou a se manifestar nas ruas. Engraçado, me lembro que, nos anos 1960, fim da década, Jacob estava preocupado, dizendo que se sentia o último dos moicanos, que o choro iria desaparecer. Jacob faleceu em 1969 e, algum tempo depois, veio um novo movimento em torno do choro. Há um movimento natural que segura o samba. Veja a revitalização da Lapa, aqui no Rio. Foi um acontecimento natural, não um projeto de uma pessoa, mas algo espontâneo. Quem foi, em São Paulo, que disse que iria fazer com que o carnaval de rua tomaria grande parte da cidade? Foram as pessoas. A história cresce e ninguém consegue segurar. A gente achava que o carnaval de rua no Rio também desapareceria, mas aconteceu algo totalmente diferente. É isso que faz com que o samba permaneça vivo.

Você viveu e compôs sob o regime militar dos anos 60 e 70. Nos quesitos desesperança e dúvida, podemos dizer que vivemos níveis comparáveis àqueles anos?

Olha, eu não sei responder a isso. Eu acabei de achar um documento de um show meu, de 1980, com o carimbo da censura autorizando o repertório que eu iria cantar. E olha que eu tive uma única música censurada na carreira. A alegação do sujeito que a censurou usava o termo “possível alusão ao militarismo”. Era um samba chamado originalmente Meu Sapato. Contava a história de um sapato, “que era um barato, porque sapateia de um jeito, que rompe as teias que se formam sobre as calçadas, sobre as saídas”. Ele representava uma pessoa, queria abrir os caminhos, pedia liberdade em última análise. Não passou. E olha que eu nem usei a palavra liberdade. Aí eu tirei a palavra que estava incomodando, da qual não me lembro, coloquei o título de Meu Novo Sapato, reenviei a música e ela foi aprovada (risos). Era um absurdo. Bem, isso não existe hoje. Vivemos algo ainda mais complexo. Esse troço não pode ficar aí. Vamos ter que descobrir uma outra forma de gestão, um outro comportamento, eu não sei. Se alguém souber, por favor, me diga. Há uma indefinição no ar, com agravamento do desemprego, da inflação. Conheço pessoas realmente em dificuldades. Eu não estou em depressão, mas estou perplexo.

Você, Chico Buarque e Milton Nascimento são os artistas mais tímidos da música brasileira. O palco é um sofrimento?

Sempre foi. Olha, lá atrás, quando eu ainda mal conseguia subir ao palco, usando sempre a mesma roupa, fui vaiado em dois festivais. E foram dois festivais que eu ganhei. Um, o Festival da Record de 1969; e o outro, uma feira de música na TV Tupi dirigida pelo meu amigo, saudoso, Fernando Faro. Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida venceu a feira, mas a plateia não queria isso. Eu apareci no palco com integrantes da Portela me acompanhando e fui muito, mas muito vaiado. A mesma coisa aconteceu quando fui defender Sinal Fechado. Acho que, a partir desse momento, passei a ver as coisas de outra maneira. A partir daí, entendi que eu deveria me preparar melhor. Fui atrás de um grupo para me acompanhar melhor. Bem, acho que consegui superar isso, essa timidez. Veja agora, eu estou conversando com você. Isso era uma dificuldade para mim.

Mas você dá poucas entrevistas

Eu percebi com o tempo que falava demais, e às vezes falava algo que não devia ter dito. Achei um dia uma revista antiga, acho que Intervalo, em que eu falava mal do Zé Kéti. Não me lembro exatamente o que, mas me arrependi amargamente daquilo. Percebi que deveria tomar cuidado. A gente pensa que sabe alguma coisa, mas não sabe nada. Não tem essa bola que acha que tem.

Então, acho que preciso dizer algo de uma forma que não pareça confete: você é um homem que conseguiu raro respeito entre os mais ricos e mais pobres do País. Isso não é pouco.

Mas é isso mesmo, a gente não está com essa bola toda. Uma vez, eu fiz um trabalho que não foi legal, um disco. E o crítico foi bastante direto no que estava errado, disse o que deveria dizer. Eu primeiro levei um susto com aquilo, mas depois percebi que ele tinha razão. É muito bom quando conseguimos chegar às pessoas preparados para ouvir delas que algo poderia ser diferente.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.