Os brasileiros e portugueses costumam dizer “para inglês ver” como uma manifestação do espírito de um povo que leva a vida com divertida leviandade. Dizemos uma coisa e fazemos outra. Mas a a origem da expressão revela uma história trágica. Ela surgiu para designar as leis contra o tráfico de escravos, assinadas entre o império britânico e Brasil e Portugal— e descumpridas pelos dois últimos. Este é o tema da tese de doutorado da professora Beatriz G. Mamigonian, da Universidade de Santa Catarina, lançada em livro pela Companhia das Letras. “Africanos livres ­­— A abolição do tráfico de escravos no Brasil” narra a história dos africanos transportados depois que o tráfico foi proibido e como suas vidas mudaram por causa das políticas do império. Em duas décadas de pesquisa em arquivos brasileiros e britânicos, Beatriz examinou decretos, despachos, petições e atas.

O livro explica por que o Brasil foi a última nação a ter banido a escravidão. “O Brasil esteve na vanguarda da discriminação contra os africanos no mundo atlântico, implementou uma política de perseguição que só foi tomar forma nos impérios coloniais europeus mais tarde no século 19, e embasou o imperialismo”.

 

[posts-relacionados]Seu estudo descreve como os britânicos aboliram a escravidão em 1807 e iniciaram uma campanha para cessar o tráfico nas suas colônias e nas dos países com quem mantinham relações, como Holanda, Espanha e Portugal. Neste e no Brasil, os tratados existiam “para inglês ver”. Leia-se: os países eram signatários, mas os ignoravam e continuavam a traficar gente, sob as barbas cúmplices das instituições locais. A partir de 1821, os britânicos obrigaram que os 397 cativos desembarcados no Brasil pela escuna Emília fossem considerados “africanos livres”. Nos anos seguintes, o Brasil concordou em “libertar’’ 11 mil africanos e em tratá-los como cidadãos, fornecendo educação e moradia, tal como o império britânico em suas colônias. Não passava de um gesto “pro forma”: de fato, os africanos livres foram incorporados ao contingente de escravos e, mesmo que tenham passado a vida reclamando seus direitos, jamais foram ouvidos.

“ELITE” Carregadores de café na capital, atividade reservada aos africanos livres

A pressão inglesa que condicionou o reconhecimento da independência à interrupção do contrabando de escravos foi o elemento essencial na formação do Estado nacional brasileiro. Para Beatriz, a pressão “pautou os embates políticos internos e as relações exteriores por décadas”.

O Estado brasileiro aprendeu a negociar e a negacear. Obteve o reconhecimento dos ingleses em janeiro de 1825 e, em agosto, de Portugal, em troca de uma indenização de 2 milhões de libras… pagas pelos ingleses.

Batizado e posse

O interesse britânico em dar cabo à escravidão era comercial. Os oligarcas brasileiros tinham idênticas razões para evitar a perda da mão-de-obra gratuita que barateava o café, o algodão e a cana. Ora, isso prejudicava a concorrência dos produtos das colônias britânicas no comércio internacional.

As leis “para inglês ver” serviram como escudo para garantir privilégios de fazendeiros e importadores de “boçais”, como eram chamados os escravos. Assim viveram 800 mil pessoas, de 1821 a 1870. “Havia uma enorme cadeia de conivência (e de beneficiamento particular) com o contrabando de tudo, e com o contrabando de escravos se usava parte da mesma estrutura”, afirma Beatriz. “Alguém na Alfândega tinha que emitir passaportes para os navios, e depois registrar a chegada ‘sem notar’ que ia à África comprar gente.” Tão logo os navios negreiros desovavam a “mercadoria”, homens, mulheres e crianças eram batizados por padres de prontidão. A certidão de batismo servia como documento de posse.

“Eles não eram escravos mas sim juridicamente livres e submetidos a trabalhos forçados” Beatriz G. Mamigonian

O livro altera a leitura simplificada da academia sobre o assunto. A nova interpretação põe em risco a reputação de “heróis da pátria” e evidencia a desigualdade que se mantém até hoje. “O sistema escravista precarizava a vida e as experiências de trabalho das pessoas livres”, diz. “Por isso é importante dizer que eles não eram escravos, mas sim juridicamente livres e submetidos a trabalho forçado. Os paralelos com o presente são gritantes, infelizmente.”