Em meio a nacos de carne crua pendurados por ganchos, uma fábrica de salame controlada pela máfia nos arredores de Nápoles é local de uma venda sombria. A transação acontece às margens da lei. No cardápio de produtos negociados estão dois tesouros arqueológicos pilhados da Líbia: uma cabeça romana do século 2 d.C. oferecida a 60 mil euros (R$ 206 mil) e uma estátua grega, ainda mais antiga, valendo 800 mil euros (R$ 2,7 milhões). O comércio clandestino ainda envolve cartéis chineses e russos, mas os mandachuvas são mesmo os bandidos italianos, aliados a terroristas do Estado Islâmico. As organizações firmaram uma parceria lucrativa, em que relíquias saqueadas de sítios do Oriente Médio e do norte da África são trocadas por armas que abastecerão radicais na Guerra da Síria. “Elas são chamadas de antiguidades de sangue”, disse à ISTOÉ Arthur Brand, investigador independente de crimes envolvendo obras arte baseado na Holanda. “Eu já vi muitas delas sendo vendidas no mercado negro.”

Criminosos internacionais

A cena acima foi descrita por um repórter italiano que trabalhou em parceria com a polícia, disfarçado de colecionador. De acordo com o jornal “La Stampa”, onde a história foi publicada, o mafioso que ofereceu os objetos revelou que eles foram escavados por arqueólogos escravizados por milícias islâmicas em sítios líbios considerados patrimônios mundiais pela Unesco. De lá, foram enviados à cidade portuária de Sirte, uma das mais castigadas pelo conflito no país e palco da captura e morte do ditador Muammar Gaddafi, em 2011. Posteriormente, as obras embarcaram em navios fornecidos por bandidos chineses para serem descarregadas num porto  notoriamente controlado pela máfia, o de Gioia Tauro, na Calábria. Lá, os navios chegam carregados de tesouros do mundo antigo e saem cheios de armas que farão o caminho inverso, abastecendo radicais no norte da África e no Oriente Médio. Os armamentos são provenientes de sindicatos do crime russos, mas são adquiridos pela máfia italiana e depois trocados pelas obras roubadas.

As preciosidades roubadas dos sítios arqueológicos
pelo EI são chamadas de “antiguidades de sangue”

A partir daí, cada uma das partes toma caminhos diferentes. As armas, na maioria das vezes, voltam para Síria e Iraque, além da Líbia. Eventualmente ficam na Europa para munir radicais baseados no continente. Recentemente, a polícia achou num estacionamento de Nápoles um carro carregado com oito pistolas, quatro submetralhadoras e um rifle de assalto, além de 650 balas e silenciadores. As autoridades encontraram até uma lista de preços para armamentos, variando de 250 (R$ 861) a 3 mil euros (R$ 10,3 mil) e escrita em árabe, francês e italiano. Já as relíquias são tradicionalmente vendidas a colecionadores ocidentais – às vezes até mesmo a museus que falsificam atestados de procedência. Como os Estados Unidos estão controlando o fluxo internacional, os compradores hoje são especialmente novos ricos asiáticos. Ao La Stampa, o mafioso mercador revelou que um famoso artista de Hollywood mandou um representante a fim de comprar peças por até 50 mil euros (R$ 172 mil), mas voltou para casa sem nada.

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Os artefatos oferecidos ao jornalista disfarçado são da Líbia, o que mostra que uma nova rota de contrabando de artes por armas desde a Síria passa pelo norte da África, desestabilizado após o caos decorrente da Primavera Árabe. O caminho original, mais conhecido pela polícia, saía do Oriente Médio passando pela Turquia. O embaixador da Rússia para as Nações Unidas declarou em abril que entre 150 (R$ 473 mil) e 200 mil dólares (R$ 631 mil) em obras deixam a Síria e o Iraque anualmente. O lucro vai para o Estado Islâmico. De acordo com ele, 100 mil desses tesouros ainda estão nas mãos dos terroristas, incluindo 4,5 mil sítios arqueológicos. O conteúdo da reportagem do “La Stampa” foi confirmado pelo ministro do Interior da Itália, Angelino Alfano, mas a polícia do país ainda evita dar declarações sobre o esquema. “Por enquanto não há evidências”, afirmou um membro dos Carabinieri ouvido pela ISTOÉ. “Esse comércio já era controlado por grupos como a Al Qaeda no passado”, diz Brand. “Atualmente, o Estado Islâmico precisa de armas. E a máfia faz tudo por dinheiro.”

Fotos: Valery Sharifulin/Corbis; Roger Blum


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