Os 12 mil habitantes da pequena cidade de Fátima, em Portugal, receberão 1 milhão de pessoas a partir da sexta-feira 12 de maio. Destes, 40 mil chegarão a pé, 2 mil são jornalistas, há 100 grupos de peregrinos, 2 mil padres, 71 bispos, 8 cardeais e o visitante mais ilustre, o papa Francisco. Tamanha mobilização num dos maiores centros de peregrinação católica do mundo tem dois motivos nobres: a celebração dos 100 anos da aparição de Maria às três crianças pastoras, na Cova de Iria, em 13 de maio de 1917, e a canonização de duas delas, Jacinta e Francisco, pelo próprio pontífice. Mas um livro, que acaba de ser lançado no Brasil, põe em xeque essa que é uma das invocações marianas mais célebres, que arrebanha milhões de devotos pelo mundo, inclusive no Brasil. Munido de documentos desde a época das visões e dotado de uma rigorosa investigação, “Fátima, Milagre ou Construção” (Ed. Bertand), da jornalista portuguesa Patrícia Carvalho, que trabalha no jornal “Público”, mostra como tudo que envolve esta Nossa Senhora lusitana é nebuloso. A começar pelas próprias aparições.

Desconfiança

As crianças que teriam visto Maria por seis vezes, de maio a outubro de 1917, eram Lucia, 10 anos, e seus primos, os irmãos Francisco, 9, e Jacinta, 7, moradores da aldeia de Aljustrel. Os três eram analfabetos, como quase todos os residentes da localidade. Ir à escola era considerado um luxo desnecessário. Mas a mãe de Lúcia, Maria Rosa, sabia ler. E era uma católica fervorosa, como quase toda a população da zona rural portuguesa. Todas as noites, a mulher lia para os filhos, geralmente passagens da Bíblia e contos religiosos. A pequena Lúcia se gabava de decorar facilmente o que ouvia, a ponto de recitar, com todos os pormenores, o que havia ouvido na noite anterior para as outras crianças. Um dos livros que Maria Rosa mais lia aos filhos era “Missão Abreviada”, de padre Manoel Couto, que tinha entre seus capítulos a “Aparição de Nossa Senhora no Monte Salette”. Na obra, o autor fala que “Nossa Senhora teria aparecido a dois pastorinhos no Monte Salette, na França, em 19 de setembro de 1846, por meio de uma luz brilhante, e comunicou dois segredos.” A descrição das vestes também é muito parecida com a que Lúcia fazia da Virgem que via na Cova de Iria. E como Maria Rosa sabia do mundo imaginário que a menina construía com base nos contos que ouvia, foi uma das principais opositoras das visões dos pastorinhos. Ela implorava para a filha, a grande interlocutora do fenômeno, negar o que dizia que via.

FÉ Irmã Lúcia, que morreu em 2005, e João Paulo II, que sofreu atentado em 13 de maio
Irmã Lúcia, que morreu em 2005, e João Paulo II, que sofreu atentado em 13 de maio (Crédito:Reprodução)

Mas Portugal vivia um ambiente favorável ao surgimento de uma Mãe salvadora. O país participava da I Guerra Mundial, atravessava um período gravíssimo de fome e era devastado por várias epidemias que, ciclicamente, assolavam seu território. “Isso, além da guerra religiosa que se travou entre a República implantada em 1910 e a Igreja Católica”, diz Patricia. E uma série de inconsistências nos depoimentos iniciais – todos documentados e relatados no livro – foram cuidadosamente solapadas pela Cúria à época. Relatemos algumas delas: 1) na segunda aparição, em 13 de junho, Lucia teria alertado Jacinta sobre a chegada da Virgem, anunciada por meio de um “relâmpago”. Muitos anos mais tarde, um dos 50 presentes no momento, Maria da Capelinha, revelou em entrevista não ter visto o menor sinal do fenômeno. 2) A versão de Lúcia ganhava cores mais fortes a cada interrogatório da Igreja, feito pelo cônego Manuel Nunes Formigão, responsável por dar uma versão literária às conversas da menina com a Virgem. A visão de Maria era mais brilhante, sua roupa tinha mais detalhes e ela lhe dizia (só a ela) mais coisas. 3) Na última aparição, em 13 de outubro, a filha de Maria Rosa cravou que a I Guerra Mundial acabaria naquele dia. Mas o fato é que cada vez mais pessoas, com o alarde da imprensa lisboeta, que contestava duramente as manifestações, se dirigiam ao povoado, em busca dos pastorinhos. Em julho já eram cerca de 5 mil.

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Em meio à batalha travada entre devotos e incrédulos, eis que surge o personagem central para que Fátima se impusesse como uma figura definitiva no devocionário popular internacional. Dom José Alves Correia da Silva, o primeiro bispo de Leiria, foi nomeado em 1920, mas muito antes já interferia no fenômeno que se dava na região. Foi ele quem pôs em marcha o processo de transformação da Cova da Iria em um centro religioso. Também mandou comprar os terrenos e encomendou o projeto do santuário, ainda antes de ser aberto o inquérito diocesano das aparições. E controlou, por anos a fio, e com rédea curta, Lucia, a personagem central do conto de Fátima e a única dos três que permaneceu viva – Francisco morreu em abril de 1919 durante um surto de pneumonia que dizimou a população local. Jacinta faleceu em conseqüência deste mesmo surto, um ano depois. Dom José ordenou a internação Lúcia, então com 13 anos, no Asilo de Vilar, no Porto, em junho de 1921. Ela só voltou para Aljustrel em 1946, depois de a mãe ter morrido, apesar de os insistentes pedidos de Maria Rosa para ver a filha. E suas correspondências eram rigorosamente controladas. Manter a vidente isolada e a versão intocada era fundamental para a manutenção do milagre.

O Vaticano começou a dar sinais de avalizar Nossa Senhora de Fátima na década de 1920. Apesar de nunca ter se referido ao caso, foi o papa Bento XV (1914-1922) quem restaurou a diocese de Leiria. Seu sucessor, Pio XI (1922-1939) mandou o núncio apostólico fazer a primeira visita à Cova de Iria, em 1926. Ele chegou a rezar o terço com os peregrinos. A essa altura, cerca de 300 mil pessoas já se deslocavam para lá. Mas o pontífice decisivo foi Pio XII (1939-1958), que recebeu o título de “Papa de Fátima” e consagrou a internacionalização do santuário, iniciado a partir da segunda metade da década de 1930. Mas vale lembrar que nenhum católico é obrigado a crer em uma aparição. “E o reconhecimento do Vaticano é rigoroso, sendo o último tendo sido feito em 1933”, diz o irmão Afonso Murad, autor de “Visões e Aparições”. Foi nessas circunstâncias que nasceu o que os estudiosos costumam chamar de “Fátima 2”. Uma história baseada exclusivamente nos escritos e palavras da irmã Lúcia, que redigiu seus três livros de memórias sob as ordens de dom José. No terceiro volume, escrito em 1939, durante a II Guerra Mundial, estão os famosos segredos. Portugal estava de fora do embate e havia um forte sentimento anticomunista, presente principalmente na segunda mensagem. Uma coisa é certa, segundo a autora. O fenômeno Fátima nunca esteve desligado do seu tempo. A evolução da mensagem acompanhou o contexto histórico. Não é certamente por acaso que, findo o período da Guerra Fria, a mensagem seja cada vez mais voltada para a paz.