Eles podem ser contados nos dedos, e mesmo pouco numerosos estão promovendo um dos maiores avanços científicos dos últimos tempos. Podem ser chamados de criadores de cérebros. Trata-se de um grupo seleto de cientistas que está construindo tecidos cerebrais vivos – ou mini-cérebros – por meio dos quais o mundo começa a conhecer melhor o desenvolvimento neuronal, os processos que estão na origem de doenças como o autismo, a esquizofrenia e a zika e a resposta do organismo à novas drogas contra enfermidades neurológicas.

Os mini-cérebros já se configuram como um recurso que divide a história das pesquisas cerebrais entre antes e depois deles. Até hoje, o estudo das engrenagens em ação no cérebro humano valia-se de análises em tecidos retirados de cadáveres, cobaias ou por meio de exames de imagens. A pequena disponibilidade de opções impõe enorme limitação, principalmente se for considerado o quanto é complexo o funcionamento do órgão.

Com os métodos de transformação, os cientistas do mundo todo passaram a colher células de fontes acessíveis – pele e urina, por exemplo – e mudá-las para células embrionárias. Desta forma, obtiveram mais facilmente a matéria-prima ideal para a geração de praticamente todo tipo de célula humana, inclusive neurônios. Essa mudança de status – ou especialização de células, como o processo é chamado cientificamente – é feita por meio do uso de uma combinação de substâncias, entre elas fatores de crescimento e hormônios. Assim, consegue-se, em laboratório, extrair células da urina de um indivíduo e, a partir delas, gerar um neurônio.

CALDO DE CULTURA

Produzir células nervosas foi um passo enorme, sem dúvida, mas não bastava para a construção de mini-cérebros. O desafio era encontrar uma maneira de estimulá-las a se reproduzir e de mantê-las nutridas. No corpo, toda célula tem a sua disposição uma rede de vasos sanguíneos por meio dos quais recebem oxigênio e nutrientes. In vitro isso não existe. O obstáculo foi superado usando um líquido especial (meio de cultivo) com nutrientes e fatores de crescimento no qual as células são mantidas nutridas e oxigenadas – sem, entretanto, crescerem da mesma forma que o órgão original. No vocabulário dos cientistas, elas formam organóides cerebrais. “Nós os chamamos desse jeito porque são como o órgão, mas não exatamente como ele”, gosta de explicar a pesquisadora inglesa Madeline Lancaster, do MRC Laboratory of Molecular Biology, pioneira neste campo de pesquisa. “Podemos ver os tecidos, cortá-los, conseguimos reconhecer as regiões”, diz.

A receita permite construir modelos de tecidos saudáveis, com células extraídas de voluntários sem doenças neurológicas, ou mini-cérebros doentes, formatados a partir de células retiradas de pacientes. Os dois estão possibilitando a observação de aspectos nunca antes vistos. “É um tremendo avanço, pois podemos decifrar a nível molecular e celular de que maneira as funções (motoras, conscientes, sensoriais etc) são criadas no cérebro durante seu desenvolvimento”, diz o brasileiro Alysson Muotri, diretor do Programa de Célula-Tronco do Instituto de Medicina Genômica, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.

No Brasil, cabe ao grupo coordenado por Stevens Rehen a liderança pioneira neste campo de estudo. Professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador de Pesquisa do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino, Rehen é autor dos mais importantes trabalhos da área feitos em terras brasileiras. Os organóides cerebrais criados em seus laboratórios estão ajudando no estudo de doenças como esquizofrenia, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Epilepsia e Transtorno Obsessivo-Compulsivo, entre outras enfermidades. E boa parte do que se sabe até agora sobre a associação entre o vírus da zika e a microcefalia veio das pesquisas conduzidas por sua equipe. Mini-cérebros produzidos pelo time infectados pelo vírus cresceram 40% menos em comparação aos que não haviam sido expostos. ”Nesse estudo confirmamos a relação entre microcefalia e o vírus zika, usando os minicérebros” afirma o cientista. O trabalho foi lido por mais de vinte mil pesquisadores em pouco mais de sete meses. Um recorde mundial.

RESPOSTA RÁPIDA

Os cérebros de laboratório também estão sendo fundamentais para agilizar testes de medicamentos. É urgente a criação de remédios para doenças neurológicas associadas ao envelhecimento populacional, como o Alzheimer e o Parkinson, ou patologias que continuam a desafiar a medicina. Um desses casos é o autismo. Nos Estados Unidos, o brasileiro Muotri usou essas estruturas para testar 55 mil drogas contra o autismo só no ano passado. “Encontramos cerca de vinte que são promissoras em reverter os defeitos morfológicos e funcionais característicos das redes neurais de autistas”, contou. Os medicamentos agora estão passando por testes de validação. A expectativa é que entrem em ensaios clínicos nos próximos anos.

Mais urgente ainda é encontrar um remédio que proteja contra os prejuízos causados pelo vírus da zika. Por isso, tanto o grupo de Muotri, nos Estados Unidos, e de Rehen, no Brasil, utilizam nessa corrida contra o tempo o auxílio dos mini-cérebros. Os dois grupos valem-se de medicações existentes. “O raciocínio é simples: drogas novas levam entre doze e quatorze anos para entrar no mercado a um custo de US 2,6 bilhões”, diz Muotri. “Ao testarmos medicamentos disponíveis, reduzimos o custo e o tempo drasticamente.”

O trabalho na Universidade da Califórnia identificou pelo menos uma droga promissora, que bloqueia a ação do vírus no sistema nervoso. O início dos estudos clínicos nos Estados Unidos está previsto para maio. Muotri pretende trazer os testes também para o Brasil, onde seriam coordenados por sua parceira de pesquisa, Patrícia Braga, da Universidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, uma dezena de medicações entrou na lista para testes do grupo de Stevens Rehen e uma das substâncias analisadas também demonstrou resultados bastante animadores. Os detalhes para viabilizar os testes clínicos estão em andamento. Acredita-se que os ensaios comecem ainda no primeiro semestre.

O INÍCIO DE TUDO
Os mini-cérebros consistem em um modelo tridimensional de neurônios vivos. Como no cérebro, as células se dividem, adquirem as características desejadas pelos pesquisadores e juntam-se em rede

POR QUE SÃO IMPORTANTES
Permitem que os cientistas pesquisem o desenvolvimento neuronal, doenças neurológicas e testem medicações em tecidos cerebrais humanos vivos. É a primeira vez que isso é possível

COMO SÃO PRODUZIDOS
• Células são extraídas de pacientes ou de voluntários sadios. Elas podem ser retiradas de várias fontes. Entre as mais comuns estão a pele e a urina

• As células passam por uma reprogramação que as remete ao estágio de células-tronco embrionárias, etapa na qual ainda não são especializadas,. Podem ser transformadas em células de qualquer parte do corpo

• Por meio de uma combinação de substâncias, essas células são induzidas a se especializar na célula desejada. No caso, neurônios

• Depois, são imersas em culturas capazes de garantir sua multiplicação até que atinjam o estágio almejado


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias