Acima, comemora o feito olímpico, na segunda-feira 8
Acima, comemora o feito olímpico, na segunda-feira 8 (Crédito:David Ramos/Getty Images)

Geovana tem só 4 anos, mas já decidiu o que pretende fazer da vida. “Quero ser lutadora de judô”, diz, sem um pingo de dúvida. A certeza tem razão de ser. A garota mora na casa humilde onde cresceu Rafaela Silva, que na semana passada se tornou a segunda brasileira da história (a outra é Sarah Menezes) a ganhar uma medalha de ouro no judô. Na terça-feira 9, um dia depois do feito histórico, Geovana não parava quieta. Prima de Rafaela, ela imitava os golpes e o olhar decidido da parente famosa. Na vizinhança, a cena se repetia. Jovens de diversas idades ensaiavam movimentos de ataque e técnicas de defesa, e a palavra ippon, o golpe máximo do judô, parecia estar na ponta da língua de todo mundo. Como Geovana, muitas outras crianças que vivem nas ruas empoeiradas da Cidade de Deus, uma das maiores favelas do Rio, se inspiram na campeã olímpica para ter o direito de sonhar com um futuro diferente. Rafaela é filha de uma das comunidades mais pobres do Rio. Nasceu, cresceu e literalmente aprendeu a lutar ali, em um programa social dedicado a jovens carentes. Para crianças como Geovana, o esporte costuma ser o caminho mais curto que separa um passado de dificuldades de um horizonte vitorioso. Para Rafaela, foi exatamente assim.

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CLIQUE PARA AUMENTAR (Crédito:Pablo Jacob/Ag. O GLobo; Stefano Martini; Christian Gaul; João Castellano/Ag. Istoé)

A palavra superação se tornou o clichê mais usado por atletas para justificar suas vitórias, mas poucas vezes ela foi tão apropriada quanto no caso de Rafaela. No Brasil, ser mulher, negra, favelada e homossexual é ter à frente uma série de obstáculos ainda mais difíceis do que as adversárias que as judocas enfrentam nos tatames. Aos 5 anos, quando começou a treinar judô em um projeto da Associação de Moradores da Cidade de Deus, Rafaela tinha que lidar com a violência e o crime. Os constantes tiroteios entre traficantes e as operações policiais forçavam a população a se esconder em casa. Mesmo depois de se profissionalizar e ir a uma Olimpíada, Rafaela precisou encarar o racismo e o preconceito, manifestados na forma de ofensas nas redes sociais após a eliminação precoce em Londres-2012. “Falaram que lugar de macaco era na jaula e não na Olimpíada”, afirma. “Pois agora a macaca que deveria estar na jaula é campeã olímpica.”

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Sob diversos aspectos, os Jogos do Rio ficarão marcados como os Jogos da superação. Rafaela não é um caso isolado na dura rotina dos atletas brasileiros. Medalha de prata no tiro esportivo (pistola de 10 m), Felipe Wu sequer tinha, até o ano passado, um lugar apropriado para treinar em São Paulo, onde mora. Felipe usava a estreita garagem de casa como seu estande particular. Lá, não contava com o espaço necessário (o corredor tem só 7 metros), nem alvo eletrônico. Ele mesmo comprava as caixas com chumbinho que usava em casa. Para economizar, costumava pegar sobras de munição das competições. “Não foi nada fácil chegar até aqui”, disse ele, pouco depois de subir ao pódio olímpico. Antes de se tornar atleta olímpica de tae kwon do, Iris Tang Sing, que estreia nos Jogos nesta semana, deixou para trás a falta de dinheiro e a indiferença dos dirigentes. Ela começou a vida esportiva em um bairro humilde de Itaboraí, na Grande Rio. A academia onde treinava fechou, mas Iris não desistiu. Para dar seguimento na carreira, contou com a ajuda do namorado, que derrubou os pés de goiaba do quintal de casa para montar uma academia improvisada. É lá que ela treina até hoje.

As mesmas barreiras sufocam o futebol feminino. Enquanto os homens ganham milhões, elas mal têm onde treinar. Algumas jogadoras da seleção ganham menos de R$ 5 mil por mês, uma fração do que recebe um jogador de nível médio que atua em um grande time do País. Até hoje, o Brasil sequer organiza um campeonato nacional decente. Marta, a maior jogadora de futebol do planeta, não tem o mesmo reconhecimento internacional de Neymar, que vive às turras com a torcida brasileira. Principal atleta da canoagem no Brasil, com chances de medalha em três categorias, o baiano de Ubaitaba Isaquias Queiroz é o símbolo perfeito da superação. A mãe de Isaquias era servente da rodoviária local e se sacrificou a vida toda para sustentar os seis filhos sozinha. A infância pobre de Isaquias foi marcada por um acidente. Quando tinha 5 anos, ele caiu sobre uma pedra e sofreu lesões internas que o levaram a perder um rim. Hoje em dia, ele é um dos atletas mais completos do Brasil.

RETRATOS Acima, público lota o Parque Olímpico, num clima festivo. À dir., a jogadora Marta, da esforçada seleção feminina de futebol
RETRATOS Acima, público lota o Parque Olímpico, num clima festivo. À dir., a jogadora Marta, da esforçada seleção feminina de futebol (Crédito:ESTUDIO RETRATO-SP; Bruno Kelly/REUTERS)

SUPERANDO A DERROTA
Às 16h15 de terça-feira 9, menos de 24 horas depois de conquistar a primeira medalha de ouro do País nos Jogos do Rio, Rafaela Silva vivia novamente a expectativa de uma semifinal olímpica. Enquanto recebia a reportagem da ISTOÉ, a atleta não tirava os olhos da tevê, que mostrava a entrada no tatame da amiga e companheira de quarto Mariana Silva, prestes a lutar na categoria até 63 kg. Perguntada se gostaria de parar para assistir ao confronto, ela abre um largo sorriso – que exibe o aparelho ortodôntico “decorado” com elásticos verde e amarelos –, apoia-se sobre a mesa, cruza as mãos e responde: “Sim, né?” A jovem de 24 anos respira judô. A arte marcial que transformou a vida dessa carioca da gema tornou-se também parte indissociável de sua personalidade. A agressividade, antes canalizada para brigas na rua, hoje derruba adversárias no tatame. A disciplina, quase inexistente na época em que Rafaela queria fugir da escola, agora faz dela uma das melhores estrategistas do esporte. Enquanto acompanha a difícil luta de Mariana, a mais nova campeã olímpica “canta” cada movimento, torce e se frustra com o resultado final: derrota da brasileira com um ippon por imobilização. Mas rapidamente retoma o foco: “Parte da vida de atleta é saber superar logo a derrota”, diz.

CENÁRIO Prova de remo na Lagoa Rodrigo de Freitas: elogios dos estrangeiro
CENÁRIO Prova de remo na Lagoa Rodrigo de Freitas: elogios dos estrangeiro (Crédito:Charlie Riedel/AP Photo)

É seguro dizer que o primeiro ouro do Brasil no Rio não teria acontecido sem a ajuda dos “padrinhos” de Rafaela, o técnico Geraldo Bernardes e o ex-judoca Flávio Canto. O treinador descobriu precocemente o talento da jovem, enquanto o ex-atleta montou o Instituto Reação, projeto social que nos anos seguintes daria o suporte de que todo campeão nato precisa. “Minha família não tinha dinheiro para pagar viagens, material de treino ou refeições”, diz Rafaela. “Eu não era ninguém.” Foi o professor Geraldo, como a judoca ainda o chama, quem tirou dinheiro do bolso para ajudar Rafaela e garantiu que a colocaria na seleção brasileira. “Eu nem sabia o que era isso.” Depois de ganhar força, técnica e disciplina no projeto social, a atleta se profissionalizou a passou a contar também com apoio de patrocinadores privados, do Ministério do Esporte – por meio do Bolsa Atleta e do Bolsa Pódio – e das Forças Armadas. A judoca é terceiro sargento da Marinha e foi incorporada graças ao Programa de Alto Rendimento das Forças Armadas.

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VETERANO Robert Scheidt, 43 anos, dono de cinco medalhas olímpicas na vela, competindo na Rio-2016
VETERANO Robert Scheidt, 43 anos, dono de cinco medalhas olímpicas na vela, competindo na Rio-2016 (Crédito:Benoit Tessier/REUTERS)

RETRATO DO PAÍS
Rafaela não mora mais na Cidade de Deus. Hoje, vive em um apartamento no Cachambi, zona Norte do Rio, com a namorada, Thamara Cézar, e três cachorros. É a parceira, que a judoca conheceu no Instituto Reação, quem cuida das redes sociais e muitas vezes faz o papel de assessora de imprensa da atleta. “Ela é muito importante nessa conquista”, afirma a judoca. Mesmo assim, os pensamentos e as ações da esportista estão constantemente voltados para a favela. A mãe, Zenilda, ainda tem na comunidade uma loja que vende doces, ração de animais, salgadinhos e refrigerantes. O pai, Luiz Carlos, trabalha desde os 15 anos e hoje faz carreto em uma Kombi comprada por Rafaela com o dinheiro recebido pelo título mundial de 2013. A cada competição ganha pelas filhas – a irmã de Rafaela, Raquel, também é judoca –, uma melhoria é feita na casa. “Elas reformaram a sala e construíram mais quartos”, diz o pai.

VITÓRIA Filho de servente, sem um rim, o canoísta Isaquias Queiroz é um dos atletas mais completos do Brasil
VITÓRIA Filho de servente, sem um rim, o canoísta Isaquias Queiroz é um dos atletas mais completos do Brasil (Crédito:Daniel Kfouri)

A trajetória difícil de Rafaela Silva e de um sem-número de atletas olímpicos brasileiros é o retrato acabado do País. A própria Olimpíada teve que superar diversas barreiras. Na política, um processo de impeachment da presidente. Na economia, uma crise sem precedente. Meses antes dos Jogos, o Rio foi massacrado pela imprensa internacional, temerosa de que o vírus da zika, a violência e outros males típicos do Brasil fizessem do evento uma tragédia. Até a semana passada, o que se viu foi o contrário. Arenas bonitas e funcionais, torcida festiva, serviços de transporte eficientes e o desfile de alguns dos maiores gênios da história do esporte tornaram os Jogos um espetáculo inesquecível. “Vamos realizar um grande espetáculo”, diz Robert Scheidt, dono de cinco medalhas olímpicas na vela. A seu modo, Scheidt é outro exemplo de superação. Depois de Londres-2012, muitos disseram que aquela seria a sua última Olimpíada. Para chegar aos Jogos do Rio, ele deixou para trás uma série de resultados ruins. Aos 43 anos, superou as limitações impostas pela idade. Se a medalha vier, Scheidt se tornará o único brasileiro a ostentar no peito seis medalhas olímpicas.

Com reportagem de Igor Costa


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