No momento em que o País debate reformas nas leis trabalhistas e no regime da previdência social, ganha força também a discussão sobre o rombo no sistema de financiamento da saúde e o que isso significará na vida do brasileiro. Estima-se que, se nada for feito hoje, em menos de vinte anos os gastos na área chegarão a 25% do PIB, o que representará investimento adicional de R$ 10 trilhões. Como tudo isso será custeado é a grande pergunta. “A saúde é um direito colocado na Constituição. O problema é que quem fez isso esqueceu-se de que essa conta deve ser paga por alguém. E nossa sociedade não consegue mais arcar com esses custos”, afirma nesta entrevista à ISTOÉ o médico paulista Claudio Lottenberg, presidente do UnitedHealth Group Brasil, que controla a Amil, e do Instituto Coalizão Saúde. Criada em 2014, a entidade reúne alguns dos principais representantes da cadeia produtiva do segmento e se propõe a apresentar saídas para mais esse desafio nacional.

O que levou a reunião, pela primeira vez, de grandes grupos privados da saúde no Brasil?

Está patente que as questões da saúde transpassam os aspectos do atendimento e da prática assistencial. Elas são a grande oportunidade que a sociedade tem de discutir temas relacionados a um direito social e, ao mesmo tempo, as possibilidades de inovação, geração de conhecimento, de emprego. Quando criamos o grupo, na metade de 2014, imaginamos que poderíamos contribuir para o diálogo com quem viesse a assumir o governo do País. O momento eleitoral passou, mas se trata de um tema tão sensível e estruturante que decidimos criar um grupo que permanentemente pensasse sobre os desafios do futuro.

 

Qual o tamanho desse mercado no País?

O setor representa 9% do PIB, abre oportunidades imensas de inovação e gera quase cinco milhões de empregos. Se fizermos um retrospecto da crise de 2008 olhando para o que aconteceu na Europa, vemos que a Alemanha foi um país que não teve praticamente sofrimento na crise. A despeito de ter havido aumento do desemprego, foi a saúde que puxou a economia alemã.

 

Observa-se algo semelhante no Brasil?

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A queda do emprego na área da saúde não foi representativa quando comparada a outros setores. Estima-se que não houve perda de cem mil posições de trabalho ao longo dos últimos dois anos. É um segmento com muito potencial, mas mal aproveitado no Brasil.

Por que o sr. diz isso?

Existe uma demanda crescente de serviços no segmento por causa do envelhecimento da população. Sabemos que a partir de 2025 cerca de 20% da população terá mais de sessenta anos. Isso exigirá um perfil de sociedade diferente da que temos e também dos profissionais do setor. Os médicos precisarão entender como lidar com a questão da longevidade, da adaptabilidade, das cidades sustentáveis. Isso vai mudar por completo o setor de saúde.

 

A tecnologia terá que papel nesse cenário?

O incremento tecnológico colocará a necessidade de fazermos opções sobre abordagens que devemos priorizar e quais tecnologias agregam valor. Hoje o consumidor quer saber se o recurso trará valor para a vida dele. Estamos saindo de um momento no qual perguntávamos ao paciente o que ele tem para a fase na qual passaremos a precisar saber o que importa para sua saúde.

 

O que esta mudança implicará?

A resposta será uma medicina mais cautelosa e mensurável e com o engajamento maior da família e do paciente. Teremos um aperfeiçoamento tecnológico, mas com envolvimento humano diferente.

 

Onde ficará o médico nisso tudo?

O perfil vai mudar. Eles terão que apresentar sofisticação maior em relação a determinados nichos de atividade profissional porque algumas coisas serão automatizadas. Na radiologia, por exemplo, grande parte dos diagnósticos será feito dentro de uma leitura com enormes bancos de dados. O médico terá um papel mais intervencionista e de orientação. Vai interpretar menos e interagir mais.

 

Não há o risco de banalização no uso da tecnologia em detrimento do cuidado mais humano?

Sua utilização está banalizada. A tecnologia inebria. As pessoas passam a achar que ela será a cura para tudo. Sabemos que não é bem assim. Por isso, os médicos terão que apresentar um conceito de ética muito forte, de economia da saúde, entender o que é marco regulatório e compreender melhor as questões envolvendo a judicialização, por exemplo.

 


Nesse item, há forte polêmica. De um lado estão pacientes, e, de outro, Estado e operadoras de saúde. Qual sua opinião?

A judicialização é um instrumento legítimo de participação da sociedade de poder questionar aspectos sobre os quais as pessoas acham que têm direito. A questão é seu uso de forma imprópria.

 

Como isso ocorreria?

Com pessoas se aproveitando dos conhecimentos de alguns, agindo de forma antiética e, em consequência disso, apropriando-se de coisas que não são legítimas. Há recursos que deveriam estar à disposição e não estão. Alguns experimentais, com evidências científicas de eficácia, mas que as agências reguladoras não são ágeis a ponto de aprová-los. Porém, muitas vezes há pressão por coisas que não possuem comprovação científica. Em outros casos, há demanda por recursos que não estão combinados em contrato. Alguém contrata um plano de saúde e excluiu da sua cobertura determinados serviços. Aí ele vai lá e, por demanda judicial, consegue um serviço que não contratou. Dessa forma quebra-se o sistema porque sobrecarrega todos os que estão financiando aquele plano. Os próximos custos serão repassados para todos.

 

A realidade é que o brasileiro muitas vezes vê-se sem ter onde recorrer. E saúde é um direito garantido pela Constituição.

Sim, esse direito está colocado na Constituição. O problema é que quem fez isso esqueceu-se de que essa conta deve ser paga por alguém. E nossa sociedade não consegue mais arcar com esses custos.

 

O que vocês, da Coalização Saúde, propõem?

Temos um sistema único de saúde. E o fato de possuirmos fontes de financiamento privado e público não significa que o sistema não seja único. Ele pode ser complementado por um sistema privado.

 

Por meio da contratação de planos?

Temos que buscar a convergência. Quando começamos a ofertar planos mais customizados, com necessidades específicas, abre-se um leque de fontes extras de financiamento. Em todo o mundo há uma revisão dos modelos. Veja o sistema inglês. É o sistema universal mais tradicional da história e está buscando inspiração em modelos privados. Na Espanha, a rede pública cobre a alta complexidade, mas há planos montados só para realização de consultas e procedimentos ambulatoriais.

 

Como sugerir isso em um momento como este no Brasil, quando muita gente não consegue pagar seus planos e está recorrendo à rede pública?

Elas têm saído dos planos corporativos. E o que aconteceu foi que os planos individuais desapareceram do mercado.

Insisto na questão. De que maneira defender que o cidadão pague planos por conta própria em uma situação de crise como a que vivemos? Isso inclusive não exime a responsabilidade do Estado de ofertar serviços de saúde?

Não. A realidade é que o Estado não consegue arcar com tudo. Defendo que o atendimento ofertado por ele seja voltado para casos mais complexos. Planos modestos podem resolver 80% do que o cidadão tem. O atendimento dos outros 20%, de maior risco, continuará garantido. Temos que fazer escolhas para que o sistema se mantenha a longo prazo. Quem vai sustentar tudo? Por meio do aumento de imposto, que ninguém quer? Do reaquecimento da economia, que ainda não acontece como gostaríamos? Há uma briga por causa da Previdência. Mas esta é até uma questão pequena perto dos desafios para a saúde.

 

Cortar desperdícios, implantar sistemas mais eficazes contra a corrupção e melhorar a gestão não seriam caminhos?

É claro que há muita coisa para fazer, muito desperdício a ser eliminado. Existem oportunidades de melhoria para tornar o sistema mais eficiente. Mas é preciso encontrar formas de aportar recursos. O sistema de saúde está falindo. E o problema é querer discutir a saúde dentro da visão de uma medicina romântica, e não sob a ótica de uma medicina métrica, humanizada e digital.

 

O sr. preside o UnitedHealth Group Brasil, que controla a empresa Amil. Suas propostas não podem ser interpretadas como uma tentativa de ampliar o mercado do qual o sr. faz parte?

Sim. Pode ser lido como uma tentativa de os planos ganharem espaço. Por outro lado, existe a interpretação de que a saúde oferece uma oportunidade enorme de gerar riqueza para o País e de ser mais bem executada. É uma possibilidade de avanço para uma sociedade que precisa se modernizar. Quem quiser continuar enxergando-a dentro de uma percepção pequena de ganho de mercado, ok. Como se o mundo pudesse viver sem bancos. Esse discurso ideológico, politizado, não me preocupa. Tenho meus valores e princípios. Jamais trabalharei para um grupo que tivesse uma operadora se ele não estivesse identificado com meus valores. Para termos o direito social à saúde, temos que procurar formas melhores de garanti-lo. Dar mais eficácia e dinheiro ao setor estão entre elas.


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