Ao intitular o romance que serviria de base para o roteiro de um filme sobre Carlos Gomes, o escritor Rubem Fonseca criou o epíteto que até hoje acompanha o compositor de “O Guarani”: o selvagem da ópera. Nascido em Campinas, no interior paulista, a 11 de julho de 1836, Antonio Carlos Gomes tinha bem pouco de selvagem, ainda que essa tenha sido a impressão deixada por sua figura ímpar no ambiente da ópera italiana do final do século 19. Egresso de um país exótico sobre o qual quase nada se sabia na Europa, o caipira Antônio Carlos Gomes conheceu a glória em um mundo cercado de vaidades e disputas, tornando-se o maior compositor lírico das Américas. Mesmo estrangeiro, foi ele o segundo nome mais encenado no Teatro Alla Scala de Milão, atrás apenas de Giuseppe Verdi. Passados 180 anos de seu nascimento, sua vida e obra rendem novas interpretações.

EXÓTICO Caracterização do índio Peri para a montagem de “O Guarani” no Alla Scala de Milão (acima), e um dos últimos retratos de Carlos Gomes (abaixo), um renovador da ópera italiana
EXÓTICO Caracterização do índio Peri para a montagem de “O Guarani” no Alla Scala de Milão (acima), e um dos últimos retratos de Carlos Gomes (abaixo), um renovador da ópera italiana

O historiador Jorge Alves de Lima anunciou para setembro o lançamento do primeiro dos quatro volumes da biografia “Carlos Gomes – Sou e Sempre Serei: O Tonico de Campinas”. Em 2017, um longa-metragem dirigido por Ariane Porto terá o ator Lima Duarte no papel do homem que compôs as óperas “Il Guarany”, “Lo Schiavo”, “Fosca” e “Maria Tudor”. Mais que trazer à tona as contradições, excentricidades e vicissitudes do compositor, as homenagens têm o papel pedagógico de ajudar a compreender a real dimensão de seu legado artístico. Filho de Manoel José Gomes, o “Maneco Músico”, e de Fabiana Maria Cardoso, Tonico entrou para o Conservatório de Música do Rio de Janeiro em 1859. Melhor aluno por cinco anos, recebeu uma bolsa para se aperfeiçoar na Itália. Com uma carta de recomendação assinada por D. Pedro II, chegou a Milão aos 27 anos com a incumbência de “escrever uma composição importante nos primeiros vinte e quatro meses de sua permanência na Europa”.

O inverno milanês, a insegurança quanto ao próprio talento e o preconceito quase frustraram seus planos. Para a família de sua futura esposa, a pianista Adelina, ele era um “pobre selvagem”, assim como o descreve o escritor Raphaello Barbiera. Graças a um professor particular, o compositor permaneceu na Itália, tornando-se um caso único de selvagem capaz de renovar a ópera italiana. “Foi ele que criou com a ‘Fosca’, em 1873, um novo tipo de música para o melodrama. Foi ele que criou a figura de ‘atriz-cantora’ com essa ópera inovadora”, escreve o musicólogo Marcus Góes em “Carlos Gomes – A Força Indômita”. Góes vai além, afirmando que as invenções do brasileiro foram copiadas por Amilcare Ponchielli na ópera “La Gioconda”.

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Ao adaptar o romance de José de Alencar, Carlos Gomes seguiu uma tendência em voga na Europa de seu tempo: a curiosidade sobre povos e costumes estrangeiros. A atração pelo exotismo aparecia em “A Africana”, ópera de Giacomo Meyerbeer encenada em Paris em 1865. É nesse contexto que a obra mais famosa de Carlos Gomes estreia, em 19 de março de 1870, no Alla Scala de Milão. Décadas depois de sua morte, a abertura de “O Guarani” permanece o tema do programa radiofônico “Hora do Brasil”, criado no governo Getúlio Vargas e rebatizado como “A Voz do Brasil” em 1971.

Na ópera que narra o romance entre Ceci, filha de um fidalgo português, e Peri, o índio herói, Carlos Gomes colocou o Brasil no mapa cultural europeu – e não só pelo cocar. Em sua música é facilmente reconhecível o uso de ritmos e harmonias que se ouviam nos salões brasileiros em meados do século 19. Como sustenta Marcus Góes, na obra de Carlos Gomes “se podia sentir o gosto da enxada, o sabor da pamonha”.

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Inovador na música, ele foi um incorrigível perdulário. Mantinha hábitos caros, como seu palacete às margens do Lago de Lecco, e só não morreu endividado porque o governo do Pará o socorreu, ao contratá-lo como diretor do conservatório de Belém. Ao assumir o posto que lhe fora negado no Rio de Janeiro e em São Paulo, Carlos Gomes já não falava com clareza e mal se alimentava – sintomas do doloroso câncer na língua que em 16 de setembro de 1896 o emudeceria para sempre.


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