Nunca, na história republicana do Brasil, um ministro do Supremo Tribunal Federal esculhambou tanto um procurador-geral como se viu na semana passada. Mas convenhamos, leitor, o repreendido estava pedindo a repreensão…

No crepúsculo de seu tempo à frente da Procuradoria-Geral da República, o procurador Rodrigo Janot, que deixa o cargo no mês que vem, parece estar negligenciando uma importante característica colada ao homem público: o que fica em sua biografia é o final da trajetória, o começo todo mundo esquece. Começa-se discreto, termina-se ruidoso. É um descuido. É o ruido que entra para a posteridade. Pois bem, o fim da jornada de Rodrigo Janot tem sido melancólico – ele sonha com bambu e flecha mas sequer sabe, ao certo, em quem pode atirá-la. Tudo isso acaba expondo a constrangimentos o Ministério Público em geral, vital instituição para a operação do direito. Janot parece estar obsessivo, e uma de suas mais recentes obsessões teve como alvo, novamente, o senador Aécio Neves. Em fato inédito, a mais alta autoridade do Ministério Público pediu três vezes a prisão da mesma pessoa, três vezes ao mesmo tribunal, três vezes sem ter um fato novo em mãos, três vezes sabendo que o pedido de tal prisão é inconstitucional. O flechado nesse caso, se bambu houvesse, como já falamos acima seria o senador Aécio Neves.

Janot e a “readequação”

A Constituição Brasileira de 1988, promulgada após o País emergir do arbítrio e da exceção de duas décadas de ditadura militar, é clara quanto à garantia da liberdade que se faz imprescindível para que deputados e senadores exerçam suas funções às quais chegaram democraticamente pelo voto popular. Isso se traduz no artigo 53, parágrafo 2º, do texto constitucional: “desde a diplomação, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”. Não há a menor dúvida de que Janot conhece profundamente a Constituição. Como ele pede então a prisão de Aécio que não foi pego em flagrante cometendo crime inafiançável? E como a pede por três vezes? Claro que o STF, em decisão do ministro Edson Facchin, rechaçou tal pretensão inconstitucional, embora tenha cometido o erro de entrar no terreno legislativo ao afastar Aécio do Senado – equívoco sanado posteriormente pelo ministro Marco Aurélio Mello. Cabe ao Ministério Público zelar pelo cumprimento incondicional da Constituição, assegurando a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. É o que Janot não está seguindo à risca no lusco-fusco de sua jornada na Procuradoria-Geral. Com a Constituição é assim: não segui-la em um ponto é não segui-la por inteiro.

Antes da esculhambação, vamos à outra obsessão de Janot: o presidente Michel Temer. O procurador o denunciou por crime de corrupção passiva com pífios argumentos, e a Câmara dos Deputados votou na quarta-feira 2 por não dar ao STF autorização para julgar o presidente. Enquanto a derrota de Janot se consolidava no plenário, ele foi outra vez à Corte pedindo que Temer e os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco sejam incluídos em um inquérito já instaurado contra o PMDB, no âmbito da Lava Jato. Separadamente, pediu também que Temer responda por obstrução de Justiça. Na ausência de novo conjunto probatório que sustente a sua ação, Janot inovou na ciência do direito: disse tratar-se de uma “readequação”. Vale observar que Dilma Rousseff, ainda antes de sofrer impeachment, teve a sorte de ver arquivado pela Procuradoria-Geral as acusações que contra ela pesavam na compra da refinaria de Pasadena. Isso sim soou, à época, como inadequação. Tanto que, por essas e outras, ela caiu. E Janot ficou com o mico da acusação de ter atuado ideologicamente a favor do PT. Decerto, o eminente procurador parece mesmo se comportar mais como uma espécie de procurador-geral do PT. Talvez como forma de retribuição pelos préstimos de Dilma ao colocá-lo no cargo.

Quanto a Michel Temer, o procurador-geral vale-se agora de uma estratégia para tentar compensar a ausência de elementos que levem à alguma prova. Só que, ainda assim, não chegará absolutamente a nada, porque não há nada para chegar. Janot quer privilegiar a acusação de que Temer obstruiu a Justiça quando o empresário Joesley Batista lhe disse no Palácio do Jaburu, em palavras escorregadias, que estava comprando o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, preso em Curitiba. Temer deveria nesse exato momento, segundo o procurador, ter-lhe dado voz de prisão, e, ao não fazê-lo, emprestou a sua anuência à tentativa de barrar as investigações da Lava Jato. Ocorre, no entanto, que tal diálogo sequer existiu, não está na gravação feita clandestinamente por Joesley e exaustivamente exibida ao público. Isso não consta da conversa, só Janot, mais ninguém, ouviu. Pois bem, a partir daí e de um fato inexistente, ele teima em querer denunciar, e para tanto pediu ao ministro Edson Fachin que isole a investigação sobre esse diálogo do restante do processo. É uma tática nada democrática, a mostrar a animosidade pessoal que mantém contra Temer.

Com tal separação, a investigação gerada pela delação premiada de Joesley Batista guardaria somente a denúncia de obstrução da Justiça. Já a investigação de eventual formação de quadrilha pelo PMDB, da qual Temer seria o líder, o próprio Janot, que montou essa tese, sabe que ela não prosperará de tão absurda que é. Aliás, se algo deveria ir para a frente, esse algo seria a cobrança à qual Janot precisa ser submetido por ter dito que, “por meio convencional de investigação” (sem infiltrar Joesley e armar flagrante), não se obteriam informações. A democracia e o Estado de Direito tremem cada vez que ouvem frases desse tipo. Convém indagar: qual é o limite, para Janot, na utilização de meios excepcionais para investigar um caso? Mais: é extremamente heterodoxo nas leis brasileiras o emprego de infrator infiltrado quando se tenta descobrir crimes. E, sempre que isso foi tentado, a coisa acabou mal. Em vez de concordar com tal método, o procurador-geral deveria, por dever de ofício, ter sido o primeiro a combatê-lo.

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Valter Campanato/Agência Brasil/André Dusek/ Fabio Motta

É tudo isso que desaguou, agora sim falemos dela, na esculhambação que Gilmar Mendes deu publicamente em Janot. Não houve meias-palavras. O ministro disparou, e por tabela sobraram críticas à sua própria Corte: “espero que a Procuradoria-Geral da República volte a ter um mínimo de decência, de normalidade, de sobriedade (…) O STF ficou a reboque das loucuras do procurador”, está inventando um “direito constitucional criado na malandragem (…), foi muito concessivo e contribuiu para essa bagunça completa. Certamente a Corte vai ter de se reposicionar”. Como se vê, as expressões foram duras mesmo: “decência”, “loucura”, “sobriedade”, “malandragem”, “volta à normalidade”…

Volta à normalidade? Eis de fato um importante ponto. O ritmo impresso por Janot naturalmente se transmite à instituição como um todo. Exemplo disso foi o pedido dos procuradores da Lava Jato para que o juiz Sergio Moro determinasse a prisão por tempo indeterminado de Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil. Em um País tão polarizado como é o nosso, nunca é demais frisar que defender a presunção da não culpabilidade, prevista na Constituição, não implica a defesa da corrupção nem o desmerecimento do Ministério Público Federal, da Polícia Federal e do juiz Sergio Moro na condução da Lava Jato. O que se quer dizer é o seguinte: o Estado de Direito sai arranhado quando uma pessoa acaba de ser presa e, sem que haja indícios concretos de sua culpa, já se pede a sua prisão preventiva – com carga psicológica ainda mais forte ao se usar a expressão “tempo indeterminado”, o que justifica a preocupação de juristas no País com o excesso de prisões alongadas e com a não fixação de prazo à prisão cautelar preventiva. Constitucionalmente, ninguém no Brasil pode ser submetido a tratamento desumano e degradante. A prisão preventiva eterna é, sim, cruel, é, sim, desumana, é, sim, esfaceladora do físico e da alma de um indivíduo. O Brasil ficará melhor sem corrupção, isso é óbvio. Mas ficará melhor ainda se o bom combate contra ela se der sem obsessão por denúncias e prisões.

O final da jornada de Janot na PGR tem sido melancólico – ele sonha com bambu e flecha mas sequer sabe, ao certo, em quem pode atirá-la


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