Há momentos na história em que o posicionamento de um governante define se o país segue no caminho da civilização ou se mantém abertas as brechas para o obscurantismo. A vida recente americana está repleta desses exemplos. Em 1957, o presidente Dwight Eisenhower enviou tropas federais à cidade de Little Rock, no Arkansas, para garantir a entrada de nove estudantes negros em uma escola pública da cidade. O direito estava assegurado pela Suprema Corte, mas parte da população branca do lugar impedia o acesso dos jovens à instituição. Em 1962, John Kennedy determinou que agentes federais escoltassem o estudante negro James Meredith em seu caminho para a Universidade do Mississipi, onde ele estava matriculado, mas não conseguia estudar. Dois anos atrás, Barack Obama emocionou-se e emocionou o planeta ao cantar a bela ‘Amazing Grace’ e sua evocação da liberdade dentro da capela em Charleston, onde, dias antes, um atirador branco havia matado nove negros. Na semana passada, Donald Trump tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a quebrar essa tradição. Em vez de defender o progresso, colocou-se ao lado do retrocesso. Em vez de defender enfaticamente a igualdade, calou diante de quem berra pela segregação. E forneceu combustível para fazer crescer em seu país e no mundo exatamente tudo aquilo que seus antecessores recusaram-se a aceitar: a escalada do ódio racial.

PERIGO Jovens, brancos e violentos: o retrato dos integrantes da marcha em Charlottesville (Crédito:Andrew Shurtleff)

Tensão crescente

A oportunidade que a história deu a Trump de ficar do lado certo – perdida por ele – veio após o ataque de grupos radicais de direita a defensores dos direitos civis em Charlottesville, ocorrido no sábado 12. Localizada no estado da Virginia, a cidade foi lugar de moradia do ex-presidente Thomas Jefferson (1743-1826), um dos chamados fundadores da nação e homem moldado pelas ideias de igualdade do Iluminismo. Mas também serviu como uma das bases do exército confederado durante a guerra da Secessão (1861-1865), que colocou em lados opostos o sul, escravagista, e o norte, abolicionista.

Há tempo Charlottesville vivia uma polêmica sobre a retirada de uma de suas praças da estátua do general Robert Lee, herói segundo a ótica confederada, porém símbolo escravagista de acordo com o olhar de quem luta pela equiparação racial. Um protesto em defesa da manutenção do monumento convocado por integrantes de grupos como a Ku Klux Klan (KKK) e neonazistas foi o estopim para o confronto entre os dois lados. Num caldeirão de tensão, o fato terminou com o atropelamento da ativista Heather Heyer pelo jovem James Fields Jr., 20 anos. Simpatizante das ideias nazistas, James jogou o carro que dirigia sobre a multidão, atingindo várias pessoas, entre elas Heather. Ela morreu em seguida.

Estátua da guerra

Para entender o ocorrido em Charlottesville é preciso voltar 150 anos na história dos EUA, à época da Guerra de Secessão, quando estados do Sul, contrários ao fim da escravidão, decidiram formar uma nova nação. Fez-se a guerra, o Norte saiu vitorioso, os escravos foram libertados. Estátuas de líderes foram erguidas em diferentes cidades americanas, incluindo a de Robert E. Lee, um dos nomes dos confederados do Sul. Uma delas em Charlottesville. Sob o argumento da relação do monumento com um movimento escravocrata e racista, a Câmara Municipal do lugar aprovou a realocação da estátua. A decisão insuflou a revolta de grupos do chamado “nacionalismo branco” que culminou no lamentável conflito do sábado 12.

Declarações dúbias

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

A reação de Trump ao episódio foi vergonhosa. Sua primeira manifestação a um país ainda atônito com as cenas chocantes vistas horas antes flertou com a infâmia. O presidente disse que condenava o que chamou de “exibição de ódio”, mas que ela havia sido praticada por “muitos lados”. Dois dias depois, pressionado e visivelmente desconfortável, voltou ao assunto com um mea culpa envergonhado quando, ao final de um pronunciamento sobre outro tema, já escrito, afirmou que aqueles que praticam o racismo são bandidos, “incluindo a KKK, os neonazistas e os supremacistas brancos.” A postura durou pouco. Logo em seguida, Trump disse que via “culpa dos dois lados” e que “havia pessoas boas” entre os extremistas de direita. A título de comparação: no mesmo dia, o ex-presidente Obama publicou no Twitter uma frase de Nelson Mandela, obviamente com teor oposto ao que seu sucessor apresentou. Ele escreveu: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, seu passado ou sua religião…As pessoas precisam aprender a odiar, e se elas podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar…”. O post virou o mais curtido da história do Twitter.

O presidente americano pecou pelo que disse e pelo que não disse. “Trump não teve uma postura esperada para um presidente da República, especialmente em um momento em que o país apresenta um tecido social que se esgarça”, afirma Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. O grande problema é que, ao agir com tamanha tibieza, Trump marcou o ponto de inflexão que o mundo temia. “Ele mostrou suas cartas, entrando em rota de colisão com os princípios professados pela maioria dos americanos de defesa da igualdade e das liberdades”, afirmou o historiador Julian Zelizer, professor da Universidade de Princeton.

INSULTO Trump disse que há pessoas boas entre os radicais (Crédito:Divulgação)

Os dias turbulentos evidenciaram que o apoio de Trump servirá de combustível para o crescimento do ódio racial no país e no mundo. “A situação vai piorar”, disse à ISTOÉ a professora Megan Boler, da Universidade de Toronto, no Canadá. “Trump alimenta intencionalmente a violência. Seu slogan de ‘fazer a América grande de novo’ é igual a ‘fazer a América branca de novo.” A percepção vem até mesmo de republicanos como o presidente. Ao criticar Trump afirmando que ninguém deveria ter dúvida sobre a posição do líder do mundo livre em relação ao racismo e ao antissemitismo, o deputado Will Hurd, do Texas, disse que daqui para frente os radicais se aproveitarão da leniência presidencial. “Os supremacistas brancos verão como uma vitória serem responsabilizados por apenas 50% da culpa.”

RADICAIS Membros da KKK e neonazistas forçam o avanço conservador nos EUA (Crédito:Divulgação)

De fato, o que se viu ao longo da semana passada foi uma espécie de saída das sombras de agremiações que vinham crescendo, já sob os ares permissivos de Trump, mas ainda sem força ou coragem suficientes para se mostrar abertamente à sociedade. Segundo o Southern Poverty Law Center, organização que estuda o tema, de 2014 a 2016 o número de grupos de ódio nos Estados Unidos aumentou 17%, totalizando 917 no ano passado. Agora, sob as bençãos de Trump, eles preparam a expansão. “Obrigado, presidente, por sua honestidade e coragem em dizer a verdade sobre Charlottesville e condenar os terroristas de esquerda”, escreveu no Twitter Richard Spencer, um dos organizadores da marcha que resultou na mais recente tragédia americana.

O espectro dos grupos que pregam o ódio é um mosaico de organizações que diferem no nome, mas compartilham do mesmo ideário. Na essência, defendem a superioridade branca, são contra judeus, estrangeiros e a população LGBT e acreditam na violência como caminho para alcançar seus objetivos. A que apresenta o maior número de seguidores é a Ku Klux Klan, criada em 1865 para perseguir negros e que, no século passado, foi uma das mais ativas contra a implantação dos direitos civis que colocaram no mesmo nível de cidadania negros e brancos. São famosos os crimes bárbaros cometidos por membros da organização, como o enforcamento de negros e a destruição de igrejas frequentadas por essa população.

A ideologia da Supremacia Branca norteia a ação de cem grupos. Eles pregam a inferioridade das raças não-brancas e também pleiteiam a segregação. Os neonazistas, a exemplo dos seguidores do alemão Adolf Hitler, têm nos judeus seus principais alvos, mas perseguem pessoas LGBT ou de alguma forma alinhadas a qualquer pensamento progressista. Em menor número estão os neoconfederados, uma versão contemporânea dos sulistas que no século 19 lutaram para manter a escravidão nos Estados Unidos. Racistas como os demais grupos, pedem que negros e brancos voltem a viver separadamente.

O episódio de Charlottesville deu rosto a esses movimentos. O que se viu ali é que operam segundo uma organização rígida, de disciplina quase militar, e dispõem de arsenal considerável. Não há homogeneidade entre seus integrantes. Entre os supremacistas, por exemplo, o predomínio é de jovens instruídos de classe média, enquanto grande parte dos seguidores da KKK é formada por fazendeiros ou moradores de cidades pobres do interior do país ressentidos com as administrações anteriores. Sentem-se esquecidos e culpam imigrantes, negros e judeus pela situação em que vivem.

Esses cidadãos são hoje os maiores inimigos da América. Ao contrário do que se imagina, a maior parte dos ataques terroristas nos EUA foi planejada por movimentos dos quais eles fazem parte, e não por extremistas muçulmanos. De 2008 a 2016, os radicais de direita americanos foram responsáveis por 115 dos atos dentro de seu próprio território. Ações perpetradas por extremistas islâmicos, 63. “O problema nos EUA atualmente é a questão da raça, e os crimes de ódio refletem isso”, afirmou à ISTOÉ Evan Lawrence, especialista em contraterrorismo da University of Central Lancashire, no Reino Unido. Trump, com sua estreiteza, alimenta a semente do mal no próprio país.

APOIO EXPLÍCITO
Apesar das pressões e de uma tímida tentativa de voltar atrás, Trump permaneceu apoiando os extremistas em suas declarações

“Nós condenamos esta exibição de ódio, fanatismo e violência de muitos lados”
Sábado, 12

“O racismo é maligno. E aqueles que causam violência em seu nome são criminosos, incluindo a KKK, neonazistas, supremacistas brancos e outros grupos”
Segunda-feira, 14


“Acho que há culpa dos dois lados”
Terça-feira, 15

“Triste ver a história
e a cultura de nosso grande país sendo destruídas pela remoção de nossas belas estátuas e monumentos”
Quinta-feira, 17

Mapa do ódio
Como se dividem os principais grupos extremistas em atividade nos EUA

130 Grupos seguem a Ku Klux Klan. Criado em 1865 para perseguir negros e enfraquecer a ideia de igualdade racial após o fim da escravidão, passou a maltratar também judeus, imigrantes, homossexuais e católicos. Marginalizados após meados do século 20, a KKK voltou a se organizar nos anos 2010

100 São ligados à ideologia chamada “white nationalism”, ou nacionalismo branco. Acreditam na “supremacia branca” e na inferioridade de raças não-brancas. Têm posicionamento de extrema direita e se identificam com as ideias de Donald Trump

99 São neonazistas, que retomam ideias do nazismo alemão de Adolf Hitler. Perseguem principalmente judeus, mas entre seus alvos estão os homossexuais e os estrangeiros

43 São neoconfederados. No geral, exaltam a cultura sulista, marcada pela presença da escravidão até 1865. Alguns grupos propagam o racismo e o separatismo branco


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias