A palavra alemã Reich tem mais de uma acepção em português. Pode significar reinado, região ou rico. Contudo, quando forma a expressão Terceiro Reich (literalmente, terceiro império), a palavra dispensa tradução. O Terceiro Reich se tornou sinônimo do mais apavorante período do século 20.

Ao longo de 12 anos, desde a nomeação de Adolph Hitler como chanceler alemão, em 1933, até o fim da Segunda Guerra, em 1945, o Terceiro Reich mergulhou a Europa e o mundo em uma era de destruição sem paralelo na História. Compreender em profundidade a ideologia nazista, que entronizou a discriminação racial e o ódio como combustíveis para conduzir a Alemanha a uma guerra devastadora, é a missão à qual o historiador britânico Richard J. Evans se dedicou para produzir a trilogia formada pelos livros “A Chegada do Terceiro Reich”, “Terceiro Reich no Poder” e “Terceiro Reich em Guerra”, que a Editora Planeta acaba de publicar no Brasil. Cada volume pode ser lido de forma independente, mas é o conjunto da obra, em mais de 2,7 mil páginas, que fornece um detalhadíssimo estudo histórico sobre a ascensão, a queda e o legado do nazismo.

Os três volumes sobre a ascensão nazista: obra refaz a gênese e o colapso do regime mais devastador da História

A trilogia de Evans chega ao Brasil no momento em que o interesse pelo tema tem suscitado o lançamento de incontáveis novos livros. Os títulos cobrem uma variedade de assuntos: das memórias de sobreviventes de campos de concentração a romances ambientados na Segunda Guerra, além de biografias de personagens centrais do período, entre eles Alfred Rosenberg, descrito como “o maior intelectual do nazismo” no recém-lançado “O Diário do Diabo” (Record).

Pouquíssimas dessas obras, porém, merecem os louros colecionados pelos livros de Evans desde sua publicação, entre 2005 e 2008. “Brilhante” e “magistral” são alguns dos adjetivos pelos quais a obra é descrita. Sobram razões para concordar com os elogios. Até pouco tempo, a literatura séria sobre a Alemanha nazista era liderada pelo best-seller “Ascensão e queda do Terceiro Reich”, do jornalista americano William L. Shirer, com milhões de cópias vendidas desde 1960, seguida pelo recente “The Third Reich: a New History”, ainda inédito no Brasil, do historiador britânico Michael Burleigh. Enquanto o primeiro peca por apresentar o que foi considerado pelos mais eruditos como um relato “grosseiro” da história alemã, o segundo prioriza o julgamento moral dos atores centrais da Alemanha nazista, algo que tende a reduzir tanto explicações quanto análises.

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O mérito de Evans em sua ambiciosa trilogia foi combinar as virtudes dos relatos anteriores e superar as respectivas limitações.

MENTE NAZISTA

“Precisamos entrar na mente dos nazistas”, escreve Evans ao explicar como buscou entender as razões pelas quais a Alemanha abraçou essa ideologia e por que opositores de Hitler falharam ao tentar detê-lo. Para dar conta desse desafio, o autor parte da unificação alemã capitaneada por Otto von Bismarck em 1871, apenas 50 anos antes dos primeiros triunfos eleitorais nazistas (1930-1932). Com Bismarck, a Alemanha fundara seu “segundo império”.

O primeiro havia durado mil anos: fora forjado por Carlos Magno no ano 800, com a criação do Sacro Império Romano da Nação Germânica, e derrubado por Napoleão Bonaparte em 1806. Ao iniciar sua narrativa por Bismarck, Evans fornece os elementos necessários para que o leitor compreenda as peculiaridades alemãs no que diz respeito às noções de soberania e dominação política e cultural. A partir daí, a obra narra em profundidade os vários aspectos que permitiram ao nazismo se estabelecer — algo que, segundo o autor, ocorreu sem o apoio da população.26

“’Os alemães’ não elegeram Hitler chanceler do Reich. Nem deram aprovação livre e democrática à criação de um Estado de partido único (…) Os nazistas violaram a lei a cada passo do processo” Ricahard J. Evans, historiador britânico

A radiografia da sociedade alemã que a trilogia apresenta se estende pelos campos da política externa, estratégia militar, economia, cultura, propaganda — e penetra a história privada, incluindo o papel das mulheres, da família e a das escolas. Um bom exemplo é o trecho usado para ilustrar as origens do antissemitismo, responsável pelo extermínio em massa de judeus durante a Segunda Guerra. Evans recorre ao caso de um diretor de escola primária no ano de 1889: ele roubara o dinheiro arrecadado para a festa de Natal dos alunos e, para se safar, atacou judeus da cidade.

A escolha do fator humano como fio condutor é central para o êxito da narrativa de Evans. Ao colocar indivíduos em primeiro plano, ele demonstra a complexidade das escolhas que precisaram ser feitas, além da “difícil e muitas vezes obscura natureza das situações que confrontaram”, como o próprio autor escreve.

Os relatos impressionam, como no desespero de um soldado russo preso pela Gestapo e torturado por várias semanas por capangas da SS, a “tropa de proteção” nazista. O horror dos combates no front e dos campos de concentração, já divulgados de todas as maneiras possíveis, ganha na obra de Evans um sentido mais amplo e ao mesmo tempo coeso.
“O propósito desse livro é entender; cabe ao leitor julgar”, afirma o autor, com absoluta razão.