Criada há mais de 50 anos, a Turma da Mônica vai enfim virar gente de verdade. Depois de estampar tirinhas diárias em jornais e páginas de gibis publicados em 29 países, de estrelar desenhos animados, espetáculos teatrais, jogos e até aplicativos para celular, os personagens que o cartunista Mauricio de Sousa criou a partir de sua filha e dos amiguinhos dela serão interpretados por crianças de carne e osso. Em 2018, Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali voltarão ao cinema no filme “Laços”. O cão da raça Llasa Apso que viverá Floquinho já está sendo adestrado para o papel. Para o restante do elenco, a seleção de atores será feita a partir de inscrições abertas ao público, a partir de 1º de maio. Aos 81 anos, Mauricio de Sousa destaca na entrevista a seguir o sucesso global de suas criações, fala de uma iniciativa para ajudar filhos brasileiros de decasséguis a se ambientar melhor no Japão e lamenta a criação de barreiras entre países.

Por que colocar crianças de verdade nos papéis da Turma da Mônica pela primeira vez num filme?

Estamos ousando. Fui convencido de que agora temos capacidade e boas condições de encarar esse desafio. Podemos treinar os cãezinhos e cuidar bem da criançada que vai trabalhar no filme. Queremos um filme alegre, que inspire e que marque época.
Como será a escolha dos atores?
Logicamente vamos buscar crianças com as características físicas mais parecidas com as personagens, mas vamos atrás de talento. A gente tem visto em programas de televisão, tipo “The Voice Kids”, como a criançada de hoje enfrenta as câmeras com categoria. Pensando nisso, abriremos as inscrições para amadores, que serão treinados pelo pessoal da produção (Quintal Digital e Latina Estúdio). Enquanto ainda estava em testes, o site www.turmadamonicaofilme.com.br, criado para as inscrições, recebeu 1,5 mil vídeos. Isso mesmo sem divulgação. Esse ainda é um universo desconhecido para nós, que teremos de domar tudo isso. As crianças selecionados serão dirigidas como pequenos grandes artistas.

O sucesso de “A Bela e a Fera”, que rendeu mais de US$ 1 bilhão em bilheteria, e o anúncio de novas adaptações da Disney com atores teve alguma influência?

Não foi esse o apelo. Independente de situações anteriores no cinema mundial, hoje nós podemos e queremos enfrentar um desafio como esse. Foi algo natural. É bom que eles tenham feito, porque assim nos sentimos em boa companhia.

A Turma da Mônica é imune à crise?

Nós temos 10 milhões de leitores permanentes no Brasil. Isso vem se mantendo de forma constante ao longo dos anos. Entra crise, sai crise, a gente continua vendendo milhões. Mesmo com o fechamento de muitos pontos de venda, nosso leitor permanece fiel. Soubemos de gente que se deslocou até 80 quilômetros só para não perder a coleção depois que a banca da cidade dele fechou.

O que explica a longevidade da Turma?

Eu poderia dar uma porção de explicações — ou de tentativas de explicação. Mas eu realmente não sei. Temos pistas. Uma delas é a proximidade intelectual e de costumes das personagens com as crianças brasileiras. Também é muito forte a identificação com a humanidade das histórias, provavelmente porque todas as personagens foram inspiradas em gente existente, minhas filhas, filhos, amigos, parentes. Todo mundo conhece alguém como a Mônica. A gente entra de sola numa realidade vivida. Além disso, a Turma tem pai e mãe. Faz mais de 50 anos que eu cuido pessoalmente disso. Mais recentemente, com a ajuda da minha mulher, Alice Takeda, que é a diretora do estúdio. Eu sou o pai e ela é a mãe. Nós mantemos um cuidado na mensagem. Não há quebra de filosofia.

Isso permanece mesmo com a concorrência da internet?

Entre nossos produtos novos há desenhos animados de 30 segundos para o YouTube, a série “Mônica Toy”. A tirinha de jornal de antigamente hoje é o YouTube. Está saindo aos milhões e milhões para o mundo todo. (O episódio especial de Páscoa, lançado em 12 de abril, chegou a 19 milhões de visualizações em 15 dias). É um sucesso tão grande que estamos planejando outras séries com o mesmo formato, sem falas. Por não ter a barreira do idioma, entra instantaneamente em qualquer país, Rússia, Japão… Ao mesmo tempo, mostra o universo da Turma da Mônica como ela foi criada, bem moleca, como a criança é em qualquer lugar do mundo. Isso é universal.

Antes do YouTube, suas histórias em quadrinhos circulavam em quase trinta países. Quais adaptações precisaram ser feitas para atender às diferentes culturas?

Pouca coisa. Por exemplo, na Indonésia, quando a Mônica e a Magali iam à praia, tinham de usar um maiô inteiriço e não biquíni. Há países em que o Bidú (cachorro) não pode fazer xixi no poste, senão a editora é multada. Na Grécia, os meninos não podem de jeito nenhum assobiar para uma menina na rua. A gente vai aprendendo o que é mico e faz o que é permitido.

E no Brasil, de que forma as características das personagens se adequaram aos novos tempos?

No começo a Mônica era um pouquinho mais violenta, dava umas pegadas mais doloridas na turminha. Uma criança de Brasília nos escreveu dizendo que se ela continuasse batendo daquele jeito no Cebolinha, ele não compraria mais a revista. Aquilo tocou o estúdio todo. Acompanhamos o que acontece. Temos um lema: a Turma da Mônica não levanta nenhuma bandeira. Quando muito ela pode segurar a bandeira que está passando. Falamos com um público que tem as mais variadas crenças e credos.
Mas recentemente saíram histórias ligadas ao catolicismo, caso da “Oração de São Francisco — Turma da Mônica”…
Eu sou católico, minha mãe era carola, minha avó era espírita, meu avô era do candomblé. De manhã eu ia à missa, à tarde na sessão de mesa branca, de vez em quando no terreiro, ou numa igreja Batista. Eu não via nenhuma diferença em nenhum deles porque as mensagens principais eram as mesmas. Temos feito parcerias com editoras cristãs, evangélicas e espíritas. Acabamos de lançar um livrinho do Chico Xavier. Eu acho isso muito positivo.

Apesar de ter passado por atualizações, a turma continua vivendo suas aventuras em um mundo real e não-conectado. Por quê?

Vamos devagar. Não podemos entrar no século 22 antes de terminar bem o 21. Nós optamos por uma visão de mundo mais ligada à terra, com mensagens voltadas para a formação e que desperte emoções. Queremos que as crianças se envolvam com a história de forma alegre, que elas se divirtam.

Há temas que são tabus para vocês?

Não colocamos sexo e agressões nas histórias. Não queremos que um gibi nosso traga qualquer lembrança de fatos que molestem a criança. Não é fugir da realidade. Ela está ao nosso redor. Apenas tratamos as histórias como entretenimento.

Há muitos gibis que se apoiam na violência, caso dos super-heróis. Seus leitores não pedem mais ação?

No comecinho da minha carreira havia donos de jornais que sugeriam colocar mais violência nas histórias. Eu me recusava. É possível contar uma bela história sem recorrer a esses suportes. Nosso estúdio é o maior do gênero no mundo, com 400 pessoas reunidas para fazer histórias em quadrinhos ingênuas, purinhas, gostosas, cômicas e ao mesmo tempo com uma mensagem permanente de bem-estar. E estamos aqui como líderes de venda.

Além dos quadrinhos, há outros segmentos a marca é líder de mercado?

Sim. A maçã é um deles. Líder inconteste. Eu não sou a serpente do paraíso, mas eu que inventei essa maçã (risos). Eu tinha filhos pequenos e quando eles comiam uma maçã, deixavam metade. Ou, quando queriam levar para a escola, não cabia na lancheira. Até que visitei uma plantação em Santa Catarina e vi umas maçãs pequenas, que não eram vendidas no mercado. Serviam para fazer pasta e dar para os animais. Pois era justamente aquela a maçã, pequena, que eu queria para dar a meus filhos. Ela cabia na lancheira. Eu sugeri lançar como a maçã da Turma da Mônica e foi aquele arraso. Hoje temos pêra, kiwi, cenoura, a alface do Horácio…

Avalio que o mundo precisa de mais turmas da Mônica. Essa é a nossa trincheira. De alguma maneira precisamos colaborar para a abolição das fronteiras e dos preconceitos. Nesse momento estamos iniciando um processo de auxílio às crianças brasileiras que estão no Japão, milhares e milhares de filhos de decasséguis que não se adaptaram plenamente à vida lá. Nem elas e nem as escolas japonesas foram preparadas para lidar com esse choque de hábitos. Falamos com o ministro da Educação e estamos entrando nas escolas para sugerir uma solução com a Turma da Mônica, que pode ajudar as crianças brasileiras para que aceitem a vida japonesa e não fiquem pensando no Brasil. Que aprendam japonês e mantenham o português. Nossa campanha ganhou destaque nos quatro principais jornais de Tóquio. Vamos repetir isso em outros países. É uma guerra contra a intolerância e a ignorância.

Vivemos um momento de intolerância também no Brasil. De que forma sua atuação pode despertar nas novas gerações uma maior aceitação do outro?

Fazendo um trabalho que mostre o contrário: que tolerância, solidariedade, respeito sejam vistas de forma positiva e que trazem felicidade. Nossos gibis não são apolíticos. Temos a filosofia de passar uma ideia de busca da felicidade e de esperança. Isso está intrínseco nas nossas histórias.

O próprio filme “Laços” trata disso…

Sim, ao falar da força da amizade e do cuidado com quem é diferente, no caso, um animalzinho. É um pingo d’água no oceano de intolerâncias que há por aí. Mas tudo bem. Vamos com um pingo, dois pingos, três pingos e de repente a gente faz um micro-tsunami que sirva para melhorar um pouco esse mundo e derrubar o nível de intolerância e violência que há por aí. Por isso quero fazer cada vez mais livros, vender mais livros que gibis. Já chegamos aos milhões. No ano passado vendemos 30% mais livros que no anterior, e num momento difícil. Quanto mais livros houver no mundo, melhor.