No Brasil marcado por golpes de Estado, presidentes cassados ou que renunciaram ao cargo, muitas vezes não se faz ideia de como os Estados Unidos se orgulham de suas transições democráticas. O processo ocorre, sem interrupções, desde 1789, quando George Washington passou a presidência para John Adams. Nessas ocasiões, as pessoas vão às ruas para receber o novo líder, o que nos últimos anos vem sendo feito com enormes comemorações e festas populares. Boa parte deles chega ao poder em clima de lua de mel com a sociedade. Donald Trump, que assumiu a Casa Branca na sexta-feira 20, como em tudo que o envolve, foge à regra também nesse quesito. Pesquisas feitas por diversos institutos de pesquisa mostram que o magnata é o novo presidente mais odiado pelos americanos em, pelo menos, 40 anos. Alguns institutos cravam que ele é o mais impopular de toda a história. Em 2009, Barack Obama ocupou a mesma cadeira com quase 80% de aprovação. Ao sair, é visto favoravelmente por 60% da população – um dos melhores índices de todos os tempos. Enquanto isso, Trump tem a simpatia de só 40% . Nem essa imagem, contudo, fez o republicano baixar a crista. Ele classificou os levantamentos de “falsos” e não dá indícios de que, no posto de homem mais poderoso do mundo, vai mudar o comportamento inflamado que o marcou. “Desse dia em diante, uma nova visão vai governar o nosso país. Desse dia em diante, será apenas a ‘América primeiro’”, disse o novo presidente, em seu discurso de posse em Washington. “O tempo da conversa fiada acabou. De agora em diante é hora de agir”.

“Desse dia em diante, uma nova visão vai governar o nosso país. Desse dia em diante, será apenas a ‘América primeiro’” Donald Trump, presidente dos Estados Unidos

A cerimônia começou ainda na quinta-feira 19, com uma visita de Trump ao cemitério de Arlington, onde estão enterrados os 400 mil veteranos de guerra. À noite, as solenidades deram lugar a shows com performances de astros do segundo escalão, já que a maioria dos famosos convidados recusou o convite, alguns deles como forma de protesto. “Ele tem suas posições políticas e as minhas são diferentes”, afirmou o cantor Elton John. “Não sou republicano nem em um milhão de anos.” O tenor Andrea Bocelli voltou atrás após reclamações de fãs e a banda Kiss declinou “educamente” a oferta. Uma parte da elite artística foi além e organizou concertos paralelos contra o novo presidente. Em conflito constante com a indústria do entretenimento, Trump alegou que não precisa de estrelas. Para agradar o eleitorado conservador, apelou para a música sertaneja e cantores de reality shows. Sua base de apoio combina também com os indicados para o gabinete, o mais rico, branco e masculino de um líder americano desde Ronald Reagan, em 1981. Dos 18 principais assessores, 14 são brancos e 12 são homens. Nenhum é latino, fato inédito em três décadas. E pelo menos três são bilionários.

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DEMAGOGIA POPULISTA

A posse de Trump é considerada a mais cara da história, ao custo de US$ 200 milhões, contra US$ 170 milhões de quatro anos atrás. Enquanto Obama atraiu cerca de 1,8 milhão de simpatizantes, o 1º dia de Trump juntou 800 mil pessoas, das quais milhares foram exclusivamente para protestar. Vários manifestantes entraram em confronto com a polícia em Washington. Anarquistas encapuzados e carregando faixas quebraram carros e depredaram estabelecimentos comerciais. A polícia usou spray de pimenta e prendeu parte dos que praticavam atos de vandalismo nas ruas. Como é protocolar, Obama passou a chave da Casa Branca a Trump. Ao seu lado, estavam ex-presidentes dos dois principais partidos, George W. Bush e Bill Clinton. No entando, pelo menos 60 congressistas democratas boicotaram a posse, demonstrando o profundo fosso criado nos Estados Unidos.

 

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O comportamento burlesco de Trump, claro, alimenta o antagonismo. Mas sua ascensão não é exclusividade dos americanos. Demagogos populistas como ele surgem em todo o mundo. Mais da metade da população de 22 nações acredita que seu país está em declínio e que os políticos tradicionais não estão dispostos a resolver os problemas do povo. Resultado: 49% das pessoas apoiam líderes fortes dispostos a quebrar regras. Entre os americanos, a divisão social e econômica piorou desde a crise de 2008. O país se recuperou rápido, mas de forma desigual. Os brancos do interior, principais apoiadores de Trump, estavam acostumados à estabilidade, mas não viram empregos e salários aumentarem. “Não há um jeito óbvio de reunificar o país, as pessoas estão divididas sobre tudo”, diz James Cameron, historiador pela Universidade de Cambridge focado em políticas internas e externas dos Estados Unidos. “E Trump em si, campanha e falas, são um fator de divisão.”

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O novo presidente é impopular não apenas entre os americanos, mas também em outros países. A dias da posse, criticou a política da Alemanha para refugiados, classificando-a de “erro catastrófico”. A reação foi imediata: “Nós, europeus, temos nosso destino em nossas próprias mãos”, declarou a chanceler alemã Angela Merkel por meio de porta-voz. “Trump acaba de assumir e já mete medo no mundo”, afirma Oliver Stuenkel, membro do Instituto Global de Políticas Públicas, em Berlim.

Em uma série de encontros de líderes globais ocorridos na última semana, o assunto mais falado foi a transição americana. No mais importante deles, o Fórum Econômico Mundial, em Davos, a elite empresarial do planeta se mostrou preocupada com o panorama dos anos Trump (leia matéria na pág. 74). Dias antes, em Paris, diplomatas de 75 países mandaram um alerta ao republicano: não mude a embaixada dos Estados Unidos em Israel de Tel Aviv para Jerusalém (conforme o magnata e diversos membros de sua equipe repetidamente disseram que fariam). Como a cidade é um dos maiores troféus para palestinos e israelenses, um movimento nesse sentido poderia piorar relações já bastante deterioradas. Caso Trump cumpra suas promessas, o que tudo indica que fará, muita coisa mudará no mundo. Os mais ricos temem os impactos no comércio e o protecionismo econômico. Os mais pobres, o acirramento de conflitos e o fechamento das fronteiras. Trump é fruto de uma era de ódio – e seu governo pode, nos próximos anos, tornar esse sentimento ainda mais perigoso68.

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