Era para ser um momento festivo a comemoração das seis décadas de existência da União Europeia. Em 1957, quando se reuniram em Roma para assinar o tratado que deu origem ao bloco, os representantes de Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Holanda entendiam que a derrubada de fronteiras comerciais entre os países europeus pudesse ser o primeiro passo para impedir que o continente fosse devastado novamente por guerras e conseguisse retomar sua importância no cenário mundial. Hoje, no entanto, o que se vê é uma Europa que caminha para a fragmentação, um processo em boa medida alimentado por sentimentos nacionalistas que envenenam as relações entre nações que durante séculos guerrearam entre si. Por isso, sessenta anos depois, o mundo se vê diante de duas questões: a União Europeia continuará a existir? Se sim, em que bases?

A procura pelas respostas será o objetivo principal dos líderes europeus que estarão reunidos no sábado 25, em Roma. Quatro dias depois, eles testemunharão a oficialização do primeiro grande golpe contra o bloco. Na quarta-feira 29, a primeira-ministra britânica, Theresa May, iniciará o processo oficial de retirada do Reino Unido da União Europeia – o Brexit -, após um plebiscito realizado em junho de 2016 ter decidido por esse caminho.

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Para entender as razões que hoje ameaçam a existência do bloco europeu é preciso, antes, compreender o pensamento que norteou sua fundação. A ideia de união é convergente com o pensamento liberal que ganhou força no pós-guerra de que a cooperação comercial entre países diminuiria a propensão a conflitos. “A União Europeia simboliza até hoje a possibilidade de superar divergências por meio da cooperação”, afirma Paulo José Whitaker Wolf, professor de Relações Internacionais da Escola de Extensão da Universidade Estadual de Campinas. “Isso contradiz a visão da guerra.”

Deu certo enquanto o continente prosperou impulsionado pela ausência de cobranças aduaneiras nas trocas comerciais. Em 1973, o êxito atraiu a adesão de Dinamarca, Irlanda e Reino Unido. Foi também nesse período que ocorreu a primeira eleição direta ao Parlamento. Pouco tempo depois, já nos anos 1980, Grécia, Espanha e Portugal entraram no bloco e, com a Queda do Muro de Berlim, em 1989, o mercado único pôde, finalmente, ser colocado em prática. Em 2002, o euro unificou as moedas no continente.

A história mostrou, no entanto, que o preceito que esteve na base da formação do bloco só foi vitorioso enquanto a economia ia bem. Confrontados pelas oscilações nesse terreno, os países adotaram, pouco a pouco, uma postura de auto-proteção que começou a colocar em risco interesse comuns. Não é à toa que o processo de esfacelamento de uma Europa unida tem sua raiz na crise econômica de 2008, quando os integrantes do bloco voltaram-se mais à solução de seus próprios problemas. E aqueles que sofreram mais, como Espanha, Grécia e Portugal, foram nos anos seguintes alguns dos principais críticos ao bloco. Em especial, queixavam-se das exigências de austeridade colocadas por nações mais ricas e menos atingidas, como a Alemanha.
A ocorrência de outros fenômenos históricos ao longo dos últimos sessenta anos contribuiu para desenhar o contexto no qual hoje se discute o futuro da União Europeia. Um dos mais importantes foi a escalada do terrorismo em nível global, cujo início foi anunciado no ataque às Torres Gêmeas, em 2001, nos Estados Unidos. Daquele dia em diante, ficou claro ao mundo ocidental que todos os países estavam sob ameaça. A situação se agravou a partir de 2013, com a criação do Estado Islâmico e seus ataques ao coração da Europa. Ainda está viva na memória o terror do atentado ao Bataclan, em Paris, em 2015, e o choque com o último ataque, na semana passada, em Londres.

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A sensação de vulnerabilidade trazida pelo terror fez germinar novamente a intolerância aos estrangeiros, um sentimento que só se agravou com o crescimento do fluxo migratório dos refugiados a partir de 2015. A reação de boa parte da população europeia foi a de repelir a presença de imigrantes, especialmente os de origem muçulmana. Praticamente seis décadas depois estava pronto o caldeirão certo para o surgimento de líderes populistas que têm suas principais posições baseadas na xenofobia e na defesa da volta de sistemas distintos de administração. “A polarização é um dos perigos mais amplos do populismo, que já ganhou força nos Estados Unidos de Donald Trump”, afirma Alexandre Afonso, professor de Políticas Públicas da Universidade de Leiden, na Holanda. “Devemos nos preocupar com os rumos que a Europa está tomando ao vermos a extrema-direita se tornar cada dia mais presente em países como a França, Alemanha e Suíça.”

Contexto adverso

É essa combinação de fatores que coloca em risco um organização que surgiu com o objetivo de superar diferenças em nome de objetivos comuns. “Enquanto questões como a crise financeira, o alto fluxo imigratório e a ameaça terrorista estiverem no topo da agenda, o bloco terá sérias dificuldades para chegar a acordos e manter a integração”, afirma Antonios Kouroutakis, professor da Escola de Direito da Business School de Madrid, na Espanha.

Não se sabe o desfecho desses processo. O que se pode dizer certamente é que o esfacelamento da organização coloca em xeque a existência de blocos que nasceram sob sua inspiração, modificando novamente as bases das relações comerciais e institucionais entre os países. “A União Europeia sempre foi um modelo de integração por ser o bloco econômico regional mais desenvolvido, com parâmetros seguidos no mundo todo”, diz Cairo Gabriel Borges Junqueira, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista. “O receio é o de que se a UE, no auge de sua maturidade, está apresentando sinais de enfraquecimento, consequentemente qualquer bloco pode passar por isso também.”

Reconstrução Pós-Guerra

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A União Europeia foi resultado de uma aspiração à reconciliação. Quando a Segunda Guerra Mundial deixou os países europeus em ruínas, o objetivo comum da integração fez um continente dividido se unir pela sobrevivência. Em 25 de março comemora-se o 60º aniversário da assinatura do Tratado de Roma (foto), que instituía a Comunidade Econômica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atômica. As duas organizações eram fruto da união iniciada em 1950 com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxemburgo e Países Baixos foram os primeiros signatários do documento, que curiosamente estava em branco. Apenas a primeira e a última folha encontravam-se prontas. O conteúdo foi preenchido depois da cerimônia oficial.

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