Quem se veste de Napoleão, no hospício ou nas ruas, tem diagnóstico fácil. Pois bem, de Napoleão se vestiam os dois principais personagens da história que aqui apresentamos – um nascido em Ajaccio, outro em Recife, ambos detentores do dom de fazer crível e viável o inexequível. Pela veemência com que falavam, eles convenciam os povos (para ficarmos numa expressão do folclore pernambucano) de que existe até “boi voador”. E, já que falamos em boi, é chegada a hora de dar-lhes os nomes: Napoleão Bonaparte e Antônio Gonçalves Cruz, esse também chamado de Cabugá, sem que até hoje se saiba ao certo o motivo.

Cogita-se que teria origem no título nobiliárquico de visconde, mas ocorre que a questão do título jamais ficou clara. Portanto, vamos só de Cabugá. Onde e por qual razão a história desses dois notáveis se cruzam, isso veio à baila na semana passada em um texto de autoria de Laurentino Gomes, um dos mais conceituados historiadores do País. O Napoleão Cabugá teve na vida a missão de raptar o Napoleão Bonaparte para dar fim ao domínio português sobre o Brasil. Detalhe importante: Cabugá gostava tanto do Napoleão verdadeiro que o imitava em tudo. A trama nos remete ao início do século XIX, mas em nome da clareza, já que a clareza é a boa fé de quem escreve, é preciso retroceder ainda mais no tempo. Tudo bem? Estamos, então, no século XVII.

Pernambuco, graças à sua agricultura, era a mais rica capitania do Brasil colônia quando em 1623 viu-se invadido e tomado pela Companhia das Índias Ocidentais – os holandeses que aqui se instalaram buscavam lucro e prosperidade. Foi para cá enviado o administrador João Maurício de Nassau, conde de Nassau e Siegen, nobre da Casa de Orange. Dotado de cultura e humanismo raros em seu tempo, ele desembarcou com uma entourage de pintores, artistas, cientistas, naturalistas e astrônomos. Recife transformou-se numa das mais exemplares e cultas localidades do planeta, e vem daí a expressão “boi voador”, que empregamos acima. Nassau, ao inaugurar uma pinguela sobre o rio Capibaribe (pinguela nessa época era alta engenharia), disse que um boi voaria de uma margem à outra. O povo atônito acorreu ao local. E o boi avoou, mas não era um boi de verdade, era um animal empalhado que foi puxado sobre a pequenina ponte (quem nos conta isso é frei Manuel Calado, na raríssima obra de 1648 intitulada “O Valeroso Lucideno”). Desde então, a expressão compõem o rico folclore de Pernambuco, tão pouco valorizado nos dias atuais. Mas vamos em frente. Como se disse, os acionistas da Companhia das Índias queriam lucro, Nassau queria sofisticação e cultura, claro que Nassau dançou. Levado de volta à Holanda, ele encomendou um panegírico ao teólogo e polímata Caspar Barlaeus, que registrou: “ultra aequinoctialem non peccavi”. Isso está em um dos maiores clássicos da nossa formação, que é o livro “Raízes do Brasil”, do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda.

AJACCIO Napoleão Bonaparte: se raptado em Santa Helena, se tornaria monarca das colônias de Espanha e Portugal, como o Brasil (Crédito:Divulgação)

Trocando o latim pelo português, o que Barlaeus disse é que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”, ditado resgatado por Ruy Guerra e Chico Buarque na peça “Calabar” (censurada, é claro, pela ditadura militar). Óbvio que Barleaus se referiu também à permissividade sexual que por aqui graçava, mas não somente a ela. O humanista quis esclarecer que em nosso País, no século XVII (e não mudou até hoje), havia “planos mirabolantes”, “planos loucos”, napoleônicos enfim. Eu digo: havia e há coisas que até Deus duvida. Nesse momento, leitores e leitoras, estamos nos aproximando bastante de nossos dois Napoleões, o Bonaparte e o Cabugá, que é sobre quem a história trata. O tempo passou e Portugal volta a mandar em Pernambuco, com o auxílio sobretudo de Fernandes Vieira, filho de escrava que se tornara rico após trabalhar com judeus holandeses de gerações e gerações pós-Nassau. Fica claro, então, que de fato era indispensável ter contado um pouco sobre a permanência de Nassau no Brasil. Agora, pronto: em cena, com vocês, os Napoleões.

Os pernambucanos andavam saturados dos altos impostos cobrados pela Coroa lusitana, saturados dos gastos de dom João VI que viera para o Brasil com a Corte fugindo de Napoleão Bonaparte (olha ele aí!), saturados, por exemplo, de terem breu à noite enquanto pagavam a iluminação pública de sua alteza no Rio de Janeiro. Sob pretextos republicanos, fizeram então eclodir em 1817 a Revolução Pernambucana. Um grupo de revoltosos teve aí a epifania: Cabugá (olha também ele aí!), homem rico e amigo de fazendeiros, bom de garfo, bom de copo e bom na sedição e sedução sobre os palanques e sob os lençois, foi enviado pelos revoltosos à Filadélfia com o título de chefe do Erário (espécie de ministro da Fazenda) e com a missão de obter apoio dos EUA — sobretudo armas e homens para, acreditem, raptar Napoleão que estava prisioneiro dos ingleses no arquipélago Santa Helena, no Atlântico Sul, após a sua fragorosa derrota na batalha de Waterloo. A loucura do projeto é que significava enfrentar a Armada britânica. O plano era trazê-lo disfarçado para o Brasil (bastante fácil disfarçar Napoleão, não é?!), e a ele seria dado o título de monarca, não absolutista, de todas as colônias de Portugal e Espanha. Isso interessava a Napoleão, não apenas pelo poder, mas porque não há preso que não aspire à liberdade. Cabugá levara consigo nada menos que oitocentos mil dólares, e, como visconde é visconde, foi firme em discutir pela imprensa americana com as autoridades daquele país. Um abade declarou que a revolução pernambucana era um “evento solitário”. Cabugá retrucou: “também Boston, sozinha e com uma população menor que a de Recife, deu início a revolução americana”. Cabugá cobriu-se ainda mais de glórias quando o próprio Thomas Jefferson, terceiro presidente dos EUA, afirmou que “não será de admirar se todo o Brasil se levantar e mandar a Família Real de volta para Portugal”.

HISTÓRIA Essa é a primeia sinagoga instalada no Brasil: liberdade religiosa com os holandeses (Crédito:Roberto Ramos/DP/D.A Press)

Dessa vez, Jefferson errou. A Revolução Pernambucana foi esmagada pelas tropas de dom João VI, e Cabugá, ao saber disso, enviou ao Brasil os poucos soldados que conseguira com o intuito de raptar Napoleão, prometendo falsamente que ele também retornaria em seguida. Os soldados foram presos assim que desembarcaram em Recife, e Cabugá, é claro, não voltou. Perdoado pela Coroa, tornou-se nosso primeiro cônsul-geral e morreu na Bolívia, como diplomata, em 1833. Hoje sobrevive como nome de importante avenida que une Recife a Olinda.

Pernambucanos judeus fundaram Manhattan

Foi um grupo de vinte e três judeus, formado por pernambucanos e holandeses, que fundou a cidade de Nova York – e todos os seus integrantes desembarcaram no território que até então se chamava Nova Amsterdã, partindo do Recife. A comprovação disso tudo veio com descobertas arqueológicas que se deram em 1999.

Em 1646, com a chegada a Pernambuco de Maurício de Nassal na função de administrador da Companhia das Índias Ocidentais, Recife e o Brasil tiveram pela primeira vez a liberdade religiosa: judeus e católicos conviviam pacificamente e foi fundada a primeira sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel. Vale registrar, como curisodade histórica, que o local no qual a sinagoga se instalou chamava-se à época Rua dos Judeus. Hoje se chama Rua do Bom Jesus.

Em 1654 os holandeses foram expulsos de Pernambuco e muitos integrantes da comunidade judaica, temendo perseguições por parte da Coroa Portuguesa (católica), deixaram o País. Em meio à essa diáspora estava o grupo que foi ao território americano e deu origem a Manhattan. Não é sem motivo, portanto, que quando eclode em 1817 a Revolução Pernambucana, contra a dominação portuguesa e com planos de raptar Napoleão na Ilha de Santa Helena para torná-lo monarca das colônias de Portugal e Espanha, o país escolhido pelos revoltosos, para pedido de apoio, foram os EUA.