10/03/2017 - 18:00
“Do jeito que vai, as Dez Medidas vão virar meia medida.” Faltava pouco para acabar a votação do projeto anticorrupção do Ministério Público Federal, no plenário da Câmara, quando o deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) proferiu essa ironia. Ele mal sabia que havia vaticinado quanto ao futuro da proposta abraçada por mais de dois milhões de brasileiros. Àquela altura, a desfiguração da proposta de iniciativa popular já havia sido sacramentada. Apenas uma das dez proposições fora mantida em sua integralidade após a votação que terminou na madrugada de 11 de novembro. Os deputados pouparam o tópico que pedia alteração da legislação prevista para o crime de corrupção. Segundo o texto-base, a pena deveria ser alterada para 4 até 12 anos de prisão. Caso o dinheiro desviado seja superior a R$ 8,8 milhões, a detenção passa à mínima de 12 anos e à máxima de 25.
As demais propostas foram suprimidas ou tiveram sua redação completamente deturpada. Ignorando o apelo popular pela aprovação integral do texto-base, o plenário votou pela rejeição de propostas que tentavam endurecer as punições para quem pratica qualquer modalidade de corrupção. Eles jogaram na lixeira a tipificação do crime de enriquecimento ilícito de funcionário público; suprimiram ainda o ponto que pedia maior dificuldade de prescrição dos crimes. Além disso, escantearam a sugestão de implantar o “delator do bem”. Que é a pessoa que ganharia uma recompensa por entregar crimes que tenha conhecimento, mesmo não tendo participado.
Em retaliação aos procuradores que encamparam a ação que mobilizou milhares de pessoas, os deputados incluíram no projeto uma emenda de própria autoria e que tem como alvo os operadores da lei: a possibilidade de punição de magistrados e integrantes do Ministério Público por crime de abuso de autoridade.
Desfiguração como essa que deturparam as Dez Medidas propostas sob a liderança do responsável pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, contra a Corrupção, acaba por amedrontar setores da sociedade organizados e outras iniciativas populares de fazerem sugestão ao parlamento. Talvez por isso, o número de propostas de iniciativa popular ou da sociedade organizada é ínfimo. Levantamento feito pela reportagem da ISTOÉ revela um dado desalentador para a democracia: nos últimos 25 anos, a Câmara e o Senado receberam apenas nove pedidos oriundos das ruas. E não é somente isso que desmotiva ou desencoraja. O tempo de tramitação até se tornarem lei pode chegar a mais de uma década.
Burocracia que acometeu o simples Projeto de Lei 2710 de 1992. De autoria do Movimento Popular de Moradia, a proposta tinha como meta criar o Fundo de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular. Mesmo sob a iniciativa de um setor organizado da sociedade, a matéria foi obrigada a “ganhar” um padrinho político. O ex-deputado federal Nilmário Miranda, que na época militava no PT, pegou tudo mastigado e apresentou o projeto como sendo de sua autoria. Mas nem assim o texto-base se livrou do tempo de espera. A proposição só se tornaria a lei 11.124 em 2005. Ou seja, 13 anos depois de entrar na Casa.
Desfiguração, como a ocorrida com as Dez Medidas, acaba por inibir setores da sociedade de fazerem sugestões ao Parlamento
Do total de projetos apresentados pela iniciativa popular, apenas quatro viraram lei. A Câmara é a Casa com a maior adesão aos projetos de autoria popular, com sete encaminhamentos, o que não é motivo de festejo. O Senado recebeu apenas dois. Assim como na Câmara, os projetos de iniciativa popular também não tramitam ali sem um “padrinho político”. A explicação é a de que, como as duas Casas não possuem um sistema de verificação de assinaturas dos abaixo-assinados, é preciso escolher um relator – deputado ou senador – que se familiarize com o assunto proposto, para então começar a tramitar em um dos parlamentos.
EXIGÊNCIA DO “PADRINHO”
Foi assim que ocorreu com o PL 4850 que estabelece medidas contra a corrupção. Apesar de entrar com a chancela dos badalados procuradores da Lava Jato e dois milhões de assinaturas, o projeto entrou para as comissões permanentes sob a rubrica de dos deputados Antônio Carlos Mendes Thame (PV-SP), Fernando Francischini (SD-PR) e João Campo (PRB-GO).
De acordo com os responsáveis pelos dois setores na Câmara e no Senado, as propostas surgidas da sociedade ainda sofrem a exigência de tramitarem com a autoria de um parlamentar porque não há mecanismo para a checagem das assinaturas, o que legitimaria o pleito. Segundo um funcionário do setor da Câmara, houve um pedido para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) auxiliar o serviço de conferência dos dados apresentados nos abaixo-assinados. Mas o TSE disse que somente atenderia a solicitação se o ofício partisse da Mesa Diretora, o que não ocorreu ainda.
Ao lançar mão da proposta de iniciativa popular, alguns parlamentares fazem o que bem entendem com a matéria. As adaptações são sempre com o objetivo de protegê-los. Exemplo maior dessa manipulação indiscriminada foi o pacote de medidas anticorrupção. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal acabou com farra com o texto alheio. Em dezembro, o ministro Luiz Fux impediu que o Senado adotasse medida semelhante à da Câmara sobre o projeto do MPF e deferiu uma liminar determinando o retorno da matéria para a Câmara. Segundo fontes ouvidas pela ISTOÉ, o magistrado pede para que seja conferida as assinaturas e, assim, garantir que o PL não prescinda de um padrinho político. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia chegou a dizer que não tinha como conferir as assinaturas, mas depois recuou e determinou que fossem checadas. O projeto voltará a ser apreciado.