Dom Paulo Evaristo Arns

1921 – 2016

A quarta-feira 14 ficará marcada como o fim de uma era para a Igreja Católica do Brasil. Neste dia morreu o último e maior representante do cristianismo que revolucionou as dioceses da América Latina, democratizou as relações entre religiosos e leigos e humanizou o contato com os pobres. O catolicismo que Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016) erigiu, a partir dos preceitos Concílio Vaticano II (1962-1965), e ao lado de companheiros como o bispo dom Helder Câmara (1909-1999), também ajudou a moldar e inspirar religiosos como o atual papa, o argentino Jorge Mario Bergoglio. A longa trajetória do cardeal, que foi a figura religiosa mais importante do País no século passado, transcendeu a esfera espiritual. Com sua figura serena e sorriso indefectível, foi um dos mais corajosos e combativos opositores dos abusos da ditadura militar (1964-1985) no País, tendo denunciado incansavelmente os casos de tortura e morte, além de ter salvado centenas de pessoas que acolheu, muitas vezes, nas dependências de sua própria igreja. Nunca se contentou em se recolher na sacristia e assistir aos fatos se desenrolarem à sua frente – como muitos de seus colegas religiosos. Foi um protagonista de seu tempo.

Apesar de ter ordenado centenas de padres e dezenas de bispos, dom Paulo não deixa herdeiros. Com ele acaba uma linhagem de católicos que por muitos anos costumaram ser chamados de progressistas, alinhados com a Teologia da Libertação (TL) – uma corrente teórica que interpreta o Evangelho à luz das questões sociais. Ainda há expoentes da TL em atividade, como os teólogos Leonardo Boff e Frei Betto, mas os bispos que se arriscaram na linha de frente da hermética hierarquia católica já morreram. Como desde o pontificado de João Paulo II (1920-2005) há uma sistemática perseguição contra esses religiosos, considerados corruptores dos ritos e das tradições cristãs, o que se vê atualmente nas dioceses, paróquias, seminários e faculdades de teologia são católicos formados sob a égide do conservadorismo e pouco afeitos ao embate. Muito diferentes do cardeal que, no início dos anos 1970, em plena ditadura militar, criou as pastorais operária e carcerária e a Comissão de Justiça e Paz, entre outros núcleos.

Mudança ideológica

Há incontáveis histórias sobre como Dom Paulo jogou luz sobre as sombras do período militar. Uma das mais famosas foi o ato ecumênico, em 1975, em plena Catedral da Sé, no coração da cidade de São Paulo, diante de 8 mil pessoas, em memória do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), assassinado nos porões do Destacamento de Operações de Informações do 2º Exército, ao lado do rabino Henry Sobel e do pastor presbiteriano Jaime Wright (1927-1999). Ivo Herzog tinha 9 anos quando seu pai foi morto pelos militares, mas tem muito vivo na memória o dia da celebração. “Havia vários atiradores de elite prontos pra justificar um massacre. Qualquer faísca, como uma vidraça quebrada, seria motivo para a deflagração. Mas oito mil pessoas chegaram, ficaram lá e foram embora em paz e em silêncio”, diz o diretor do Instituto Wladimir Herzog. “Esse é o poder de Dom Paulo: com essas manifestações pacíficas, ele derrubou um regime violento.” Outra passagem histórica foi o encontro com o presidente Emilio Garrastazu Médici (1905-1985), no início dos anos 1970. Na ocasião, a fase mais recrudescida do regime, o cardeal foi ao general entregar, em nome do episcopado, o documento “Não te é lícito”, no qual os bispos exigiam o fim das torturas. Médici teria dado um murro na mesa e o expulsado do gabinete, não sem antes falar: “O senhor fique na sacristia, que nós cuidamos da ordem.”

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Um dos mais duros golpes sofridos pelo cardeal foi a diminuição de sua arquidiocese, ordenada por João Paulo II

Desde os primeiros passos como bispo, o religioso franciscano optou por olhar para aqueles que a maioria preferia evitar. Como auxiliar de Dom Agnelo Rossi, no fim dos anos 1960, dedicou-se aos presos da Casa de Detenção Carandiru e criou várias Comunidades Eclesiais de Base, as famosas CEBs em sua região, Santana, um exemplo que é replicado com sucesso em muitos países até hoje. Em 1969 travou o primeiro contato com os horrores da tortura, quando foi acionado para ajudar frades dominicanos presos em São Paulo. E nunca mais parou de ajudar. Assim que foi elevado a cardeal, em 1973, pelas mãos de Paulo VI, criou a Comissão de Justiça e Paz, para poder trabalhar ainda mais pela causa. O ex-ministro da Justiça José Gregori, que foi presidente da Comissão de Justiça e Paz durante dez anos, afirma que o cardeal foi um lutador corajoso e equilibrado. “Modéstia à parte, convivi com muita gente importante no Brasil e não tenho nenhuma dificuldade em dizer que ele foi o brasileiro mais importante na década de 1970 porque foi o grande combatente contra a ditadura e o grande construtor da democracia brasileira”, diz. O ex-ministro faz outra observação. Pelo menos dois partidos políticos brasileiros, o PT e o PSDB, tiveram um grande apoio e inspiração na luta de Dom Paulo. Nenhum dos dois teriam se constituído sem ele, diz Gregori.

Irmãos latinos

Dois ex-presidentes eram amigos pessoais do cardeal da resistência. Luiz Inácio Lula da Silva, que Arns conheceu em uma de suas visitas às celas da repressão – o então operário havia sido preso após uma greve de metalúrgicos do ABC. E Fernando Henrique Cardoso, pelo qual o franciscano também intercedeu quando este estava sob a mira dos militares. Mas Dom Paulo não lutou apenas pela causa dos perseguidos políticos brasileiros. Salvou centenas de argentinos, paraguaios, uruguaios e chilenos, que abrigou nas dependências da cúria, fugidos das ditaduras de seus países. “Ao lado do pastor Jaime Wright, pedimos apoio para o cardeal nos ajudar a salvar os refugiados e ele nos respondeu de imediato”, diz Jan Rocha, do Clamor, entidade que auxiliava refugiados latino-americanos. “O mais bonito é que ele os amparava das duas formas: espiritual e prática.”

Um homem com a dimensão histórica de Paulo Evaristo, que morreu aos 95 anos, coleciona episódios memoráveis e facetas a serem exploradas – vide o número de biografias que já foram feitas sobre ele e até uma obra de sua autoria que explora a profana paixão por um time de futebol (“Corintiano, Graças a Deus”, Ed. Planeta). Mas ao ouvir as dezenas de vozes se erguerem para render homenagens a ele diante de sua morte, as duas palavras mais ouvidas são coragem e humildade. Quinto dos catorze filhos dos colonos de Forquilhinha (SC) Gabriel Arns e Helena Steiner, Paulo Evaristo se tornou frade franciscano e se formou na Sorbonne, em Paris. Considerado um intelectual refinado e brilhante por seus pares, costumava zombar de si mesmo. Quando passou o cargo de arcebispo de São Paulo para o também franciscano dom Claudio Hummes, em 1998, disse para os presentes: “Uma coisa vocês podem ter certeza: está assumindo alguém bem mais inteligente do que eu.” Para Ivo Herzog, existem dois cardeais. O que passará para os livros de história e o que ele viu abraçar sua mãe no dia do culto ecumênico. “A imagem que vai comigo para sempre é dele acolhendo minha mãe, abraçando e dizendo “chora, chora”, após a morte do meu pai. Isso é humanidade, solidariedade, e ele nem a conhecia.” O diretor do Instituto Wladimir Herzog afirma que o País perdeu um herói na semana passada. “Era o heroísmo na forma mais pura. Ele não se proclamava, não falava sobre si. Nunca o vi contar grandes façanhas, como um protagonista. Agia para os outros.”

O cardeal que decidiu passar os últimos anos de sua vida num humilde convento em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, não conheceu o medo, segundo o escritor e teólogo Frei Betto. “Ele tinha por hábito, quando se despedia, dizer ‘coragem’ a seu interlocutor. Era a expressão que mais usava”, afirma Betto. A quem interessar, a palavra coragem deriva do latim e significa “agir com o coração”. Nada mais adequado.

Cinco momentos marcantes da vida de dom Paulo Evaristo Arns