A vida nunca foi fácil para Duda. Ele teve uma infância humilde em Presidente Prudente, no interior de São Paulo, e enfrentou a morte precoce e repentina do homem que o levou ao atletismo, o seu pai. No esporte, o bicampeão mundial indoor do salto em distância superou uma quantidade angustiante de lesões, que, mais de uma vez, ameaçaram a continuidade da carreira. Agora, ele encara o descrédito de muitos que não veem nele alguém em condições de lutar por uma medalha nos Jogos do Rio. Mauro Vinícius Hilário Lourenço da Silva, nome que foi convenientemente trocado por um apelido, dado pela avó, de meras duas sílabas, sabe que o tempo não está ao seu lado. Às portas dos 30 anos, que completará em dezembro, ele ainda não conseguiu explorar todo o seu enorme potencial – nem chegou perto disso. Duda está consciente de que a Olimpíada carioca será um momento definidor. Se não conseguir brilhar no maior evento multiesportivo do mundo, dificilmente terá outra oportunidade de confirmar as previsões triunfantes feitas por aqueles que o viram dar os primeiros passos no atletismo, em uma castigada pista de sua cidade natal.

Duda era um menino mirrado quando descobriu a modalidade na qual faria fama. O pai, Mauro José da Silva, disse a ele que o levaria para fazer um teste e que até conhecia um treinador em Prudente. Ele se referia a Aristides de Andrade Junqueira Neto, o Tide, um profissional veterano das provas de salto. O técnico ficou encantado com o que viu. Não demorou mais do que poucos minutos para Tide se convencer de que estava diante de um fenômeno.

A alegria do treinador durou apenas algumas semanas. De um dia para o outro, o prodígio deixou de aparecer nos treinos. Foi só muito tempo depois que Tide descobriu que Duda estava se dedicando a um outro esporte, o futebol.

A mudança repentina não ocorreu por acaso. Na família de Duda, o futebol sempre foi uma grande paixão. Mauro, o pai, era louco pela bola e, embora fosse policial militar de profissão, havia sido jogador na juventude e treinava um time de futsal em Prudente. João Henrique, o irmão mais velho, chegou a ser profissional, tendo atuado até fora do Brasil em países como Suíça e Trinidad e Tobago. Eduardo José, o caçula, também se dedicava com afinco às partidas em Prudente. Sendo assim, o filho do meio do casal Mauro e Iza Lourenço não teve muita escolha. “Para falar a verdade, eu não tinha interesse no futebol, mas meus familiares me incentivavam e eu ia”, diz Duda. “Eles achavam que eu levava jeito para ser jogador, mas nunca botei muita fé nisso.” Atualmente, sua relação com o futebol se limita a uma pelada ou outra com os amigos.

Segundo o técnico, Duda poderia ter sido um velocista excepcional, mas ele acabou optando pelo salto em distância
Segundo o técnico, Duda poderia ter sido um velocista excepcional, mas ele acabou optando pelo salto em distância (Crédito:Frederic Jean/Ag. Istoé)

As habilidades do adolescente com a bola nos pés podiam ser questionáveis, mas uma coisa era certa: ele corria muito. Não havia em Prudente e região algum menino que pudesse com ele quando Duda arrancava em direção ao ataque. Só que o futebol é um jogo de contato e isso não favorecia um garoto tão magro, que passava as partidas mais no chão do que em pé. Um dia a realidade se impôs e o treinador da equipe concluiu que a extraordinária velocidade seria melhor aproveitada em outro esporte. Foi assim que o atletismo voltou à vida de Duda.

Em 2004, aos 17 anos, ele pisou de novo na pista que um dia abandonara repentinamente. Desta vez, foi acolhido pelo treinador Inaldo Sena, um especialista em provas de velocidade que ficou tão impressionado com o talento de Duda quanto Tide havia ficado naquela experiência inicial. “A gente fez testes de corrida e de saltos com ele e no primeiro salto ele já marcou sete metros”, lembra Inaldo. “Na hora eu pensei: ‘Este menino nasceu para ser atleta’.

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O Aristides trabalhava no mesmo local e ficou maluco quando viu.” Daí iniciou-se uma pequena batalha pela “posse” do garoto. Levou a melhor Tide, que, afinal, era o especialista em saltos. Ninguém pode dizer que a troca não foi acertada para Duda, pois lá se vão 12 anos e ele continua trabalhando com o veterano técnico. “O próprio Duda me contou que queria ter me procurado quando decidiu voltar ao atletismo, mas não fez isso porque tinha medo de eu ainda estar bravo por ele ter sumido da primeira vez”, afirma Tide.

Embora estivesse seguro de que o menino se tornaria um excelente saltador, o técnico teve muito trabalho para convencê-lo disso. É que os treinos de salto maltratavam o frágil corpo de Duda, muito mais do que os de corrida. Além disso, ele demonstrava ter um potencial gigantesco para as provas de velocidade. Até hoje, Tide acredita que o pupilo teria sido um brilhante corredor de 100 metros rasos caso tivesse se aprofundado no trabalho para essa prova. “Eu tenho certeza de que ele poderia correr abaixo de dez segundos”, afirma o técnico. Essa afirmação é capaz de deixar qualquer especialista em atletismo de queixo caído, já que a marca dos dez segundos é uma espécie de barreira intransponível para o atletismo brasileiro. Nenhum atleta do País jamais conseguiu correr a prova abaixo disso (o recorde nacional, de Robson Caetano, estabelecido em 1988, é de dez segundos cravados).

“Sinceramente, é bom não estar cotado para os jogos do rio, porque ninguém vai prestar muita atenção em mim. assim, posso surpreender”
“Sinceramente, é bom não estar cotado para os jogos do rio, porque ninguém vai prestar muita atenção em mim. assim, posso surpreender” (Crédito:Frederic Jean/Ag. Istoé)

Se tinha potencial para ser um grande velocista, por que Duda abandonou os 100 metros? A resposta, segundo Tide, é simples: seu físico não foi feito para suportar essa prova. De acordo com o técnico, o bicampeão mundial no salto é um atleta ao mesmo tempo explosivo e leve, para não dizer franzino, e tem uma tendência a se lesionar em trabalhos de velocidade máxima. Por essa razão, ele abandonou as provas de corrida e concentrou-se exclusivamente no salto em distância.

Não foi uma má escolha, como o tempo logo se encarregou de mostrar. Em 2005, apenas um ano após decidir se dedicar para valer ao atletismo, o moço de Presidente Prudente saltou 7m73, uma das melhores marcas do mundo para juvenis daquela temporada. Aparentemente, nada poderia atrapalhar a marcha triunfante de Duda rumo à elite de sua modalidade, mas o destino pregaria uma peça naquele ano. Em 3 de junho, enquanto o garoto vivia mais um dia de treinos em São José do Rio Preto, cidade que adotara como lar havia poucos meses, em Presidente Prudente um ataque cardíaco matava o seu pai, Mauro José. Sem o maior incentivador, Duda perdeu o chão e o gosto pelo atletismo. Algum tempo depois da fatalidade, deprimido, decidiu abandonar o esporte e voltar para a terra natal, para junto da mãe e do irmão caçula (o mais velho, naquela época, jogava futebol em Trinidad e Tobago).

Na cabeça do saltador, não valia mais a pena treinar e competir sem que o pai pudesse vê-lo. Por isso, decidiu largar tudo, e só não fez isso por causa da postura firme da mãe. É dela o relato daquele momento dramático: “O Duda morava em uma república em Rio Preto e, em maio de 2006, quase um ano depois do falecimento do meu marido, ele me ligou dizendo que eu deveria ir buscá-lo porque não queria mais ser atleta”, diz Iza Lourenço, que era cabeleireira em Prudente. “Ele tinha medo de que eu também morresse e queria ficar perto de mim. Então, coloquei uma placa de ‘fechado’ no salão, peguei o meu filho caçula e fui para Rio Preto. Encontrei o Duda com a mala pronta, mas disse que nós iríamos ficar lá. Logo eu achei um imóvel para alugar, peguei minhas economias, paguei seis meses de aluguel adiantado e, no dia 3 de junho, um ano após o falecimento do meu marido, fizemos a mudança.”

Com a mãe ao seu lado, Duda deixou para trás a depressão e voltou a olhar para frente. Em 2007, viveu um dos momentos mais importantes da carreira ao superar a barreira dos oito metros pela primeira vez (saltou 8m02). Pouco tempo depois, alcançou 8m10, conquistando com essa marca o direito de disputar os Jogos Olímpicos de Pequim, no ano seguinte. Assim, concretizou uma das premonições mais insólitas da história do esporte nacional.

Neste ponto da história, é preciso voltar a 1996. Em uma noite qualquer daquele ano, Iza Lourenço teve um sonho muito claro: em uma tela pendurada na parede, ela via o filho do meio competir na Olimpíada de 2008. Ela não sabia qual era o esporte, nem o local dos Jogos, mas tinha certeza de que Duda estava lá, e que a cena se passava em 2008. Muito tempo depois, lá pelo fim de 2003, o sonho se repetiu e Iza disse em tom solene ao filho que dali a pouco mais de quatro anos ele estaria em Pequim – àquela altura, já se sabia que o evento seria realizado na capital da China. Por respeito à mãe, Duda se esforçou para não rir. Em agosto de 2008, quando um amigo convidou Iza para assistir aos Jogos em sua casa, ela mal pôde acreditar no que via: o filho era anunciado como um dos competidores do salto em distância da Olimpíada e a imagem chegava a seus olhos graças a uma tevê de tela plana pendurada em uma parede da casa. Tudo aconteceu exatamente do jeito que ela havia sonhado.

O resultado obtido por Duda em Pequim esteve mais para pesadelo do que para sonho. Nas eliminatórias, ele saltou 7m75, muito distante de sua melhor marca, e não conseguiu ir à final. Foi preciso esperar mais quatro anos, entre uma lesão e outra (inclusive a mais grave de todas, o rompimento do ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo, em 2010), para finalmente comemorar uma conquista de grande impacto internacional. No Mundial Indoor de 2012, disputado em Istambul, na Turquia, o prudentino saltou 8m23 e ganhou a medalha de ouro, preenchendo um vazio no currículo que o incomodava bastante. “Eu já tinha saltado 8m22 e participado de uma Olimpíada, mas ainda não contava com um grande título. Tive a sorte de estar bem preparado naquela competição.”

O título mundial indoor deu ao atleta fama, um bom dinheiro (investido na compra de uma casa para a mãe em Rio Preto) e confiança, mas também trouxe muitas cobranças, algo até então desconhecido para ele. De uma hora para outra, torcedores começaram a pedir por uma medalha nos Jogos Olímpicos de Londres, disputados no mesmo ano do torneio de Istambul. Essa pressão inesperada acabou roubando a tranquilidade do saltador, o que acabou se revelando fatal. Na final olímpica, Duda saltou apenas 8m01 e ficou em sétimo lugar. “Talvez um problema dele seja o excesso de vontade de fazer um grande resultado. Em Londres, acho que isso pesou”, diz o técnico Tide.

Duda superou a morte do pai e uma série de lesões que quase o fizeram abandonar o esporte
Duda superou a morte do pai e uma série de lesões que quase o fizeram abandonar o esporte (Crédito:Frederic Jean/Ag. Istoé)

Dois anos mais tarde, no Mundial Indoor de Sopot, na Polônia, a vontade de ganhar não foi um problema para o saltador. Com a marca de 8m28, sua melhor em pista fechada até hoje, Duda conquistou o bicampeonato da competição. O sucesso em torneios indoor fez do prudentino um grande enigma para os amantes brasileiros do atletismo. Todos se perguntam por que ele não consegue um desempenho tão bom em pistas ao ar livre, já que eventos em estádios fechados são raros no País.

A verdade é que o próprio atleta não tem uma explicação convincente para isso, nem seu treinador. Eles arriscam dizer que é uma questão de confiança, já que seu primeiro grande resultado internacional surgiu em um torneio indoor, mas trata-se apenas de palpite. Em um aspecto, porém, Duda exala certeza: ele detesta quando dizem que não é capaz de competir em alto nível a céu aberto. É uma das poucas ocasiões em que o sorriso abandona o rosto. “A minha melhor marca indoor é 8m28, e a outdoor, 8m31 (obtida em 2013). Para mim, isso é uma prova de que sou melhor ao ar livre.”


Duda sabe que pode falar o que quiser, mas, se não conseguir um grande resultado nos Jogos do Rio (leia-se uma medalha), continuará sendo tachado de “atleta indoor”. Por isso, trabalha dia e noite pensando na Olimpíada. Morando agora em São Caetano do Sul, onde treina como integrante do Clube de Atletismo BM&FBovespa, ele divide a casa, as angústias e as incertezas com Giovana Cavaleti, atleta do heptatlo que integra a mesma equipe e é sua namorada há quatro anos. Se bem que, segundo ela, angústias e incertezas são coisas que Duda praticamente não tem. “Ele é uma pessoa que sempre acredita que tudo vai dar certo, mesmo que a situação seja ruim”, relata Giovana, que diz ter algum trabalho para conter o assédio feminino sobre o namorado. Tudo culpa, nas palavras dela, do excesso de simpatia do saltador. “O Duda é uma pessoa que sempre quer agradar aos outros. Ele é tão simpático com as meninas, tão acessível, que elas podem achar que se trata de outra coisa. Vivo falando isso para ele.”

Com a marcação cerrada da namorada, o bicampeão mundial não corre risco de sair da linha meses antes da maior competição da carreira, embora quem o conheça bem jure que sair da linha não é algo que faça parte da história de Duda. Mesmo sendo primo do pagodeiro Thiaguinho, com quem tem relação bastante próxima, ele nunca foi de se arriscar na noite. “Já vi muitos grandes atletas se perderem por causa do comportamento desregrado, mas o Duda é um bom menino, disciplinado, nunca me deu trabalho”, testemunha Tide, para quem o saltador é capaz de alcançar muito mais do que os 8m31, sua melhor marca.

Cabe ao técnico quebrar a cabeça para fazer Duda trabalhar intensamente e, ao mesmo tempo, não se machucar. Eles ainda têm bem fresca na memória a lesão de joelho que arruinou a temporada no ano passado. Por causa do infortúnio – um pedaço de cartilagem que se desprendeu do joelho esquerdo –, Duda ficou fora do Pan de Toronto e do Mundial de Pequim. Em 2016, já recuperado da lesão, ele não teve chance de ser tricampeão mundial indoor porque um problema de panturrilha o impediu de se classificar para a competição, disputada em Portland, nos Estados Unidos. Com tantas contusões e tão pouca atividade nos últimos meses, Duda saiu do campo de visão dos especialistas e, dessa maneira, não é apontado como candidato a ir ao pódio no Rio. O que pode ser uma grande vantagem, na opinião dele. “Sinceramente, acho que é bom não estar muito cotado, porque eu gosto de surpreender”, afirma o saltador. “É muito bom para o Duda que ninguém esteja falando dele”, concorda o ex-velocista Claudinei Quirino, maior ídolo de Duda no atletismo e vice-campeão olímpico no revezamento 4×100 metros em 2000. “Assim ele pode treinar sem pressão.”

Enquanto Claudinei garante que Duda não vai se sentir amedrontado por disputar os Jogos Olímpicos em casa e Tide trabalha a cabeça do atleta para que o excesso de vontade não mais seja um problema, o prodígio de Prudente se permite sonhar. Assim como a mãe pressentiu sua participação na Olimpíada de 2008, Duda se imagina no pódio no Rio, com uma medalha no peito e a certeza de que valeu muito a pena passar por tanto coisa nos 12 anos que dedicou ao atletismo. Se isso acontecer, ninguém mais vai conseguir fazê-lo parar de sorrir.

QUEM É ELE

Nome: Mauro Vinícius Hilário Lourenço da Silva
Idade: 29 anos (26/12/1986)
Local de Nascimento: Presidente Prudente/SP
Peso: 69 kg
Altura: 1m83

PRINCIPAIS RESULTADOS:

_Campeão mundial indoor (Istambul/2012 e Sopot/2014)
_Quinto colocado no Mundial de Atletismo (Moscou/2013)
_Campeão sul-americano (2013)
_Tricampeão do Troféu Brasil (2012, 2013 e 2015)

RECORDES PESSOAIS

8m31 (pista ao ar livre)
8m28* (pista indoor)
* recorde nacional


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