O Brasil discute como deter a assustadora onda de violência que assola o país, dentro e fora das prisões, com propostas que vão da descriminalização do uso de drogas ao reforço do arsenal repressivo.
Não passa um dia sem que a capacidade de assombro não seja desafiada.
Acertos de contas com decapitações, mortes de policiais e represálias em massa disputam as manchetes dos jornais com os destaques da operação Lava Jato e seu potencial de deixar o sistema político em pedaços.
A guerra entre facções de traficantes de drogas nas prisões deixou cerca de 140 mortos desde o começo do ano com grandes massacres nos estados de Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte.
Em Belém, pelo menos 27 pessoas foram mortas no fim de semana, aparentemente por milicianos, em represália à morte de um agente.
No estado do Rio treze policiais foram mortos desde o início do ano.
Com uma taxa de 21,2 assassinatos com arma de fogo por cem mil habitantes, o Brasil está entre os dez países onde é mais perigoso viver, segundo o “Mapa da Violência 2016”, publicado pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso).
Esta média, que em 2012 era de 20,7, superava a do México, de 13,6; a dos Estados Unidos, de 3,6, e em nenhum país da União Europeia se situava acima de 0,5.
Quase um milhão de pessoas (precisamente 967.851) foram assassinadas no Brasil entre 1980 e 2014.
Dados que chamam a atenção em um país “sem conflitos fronteiriços ou de religião e sem guerra civil”, comentou, em Recife, o autor do Mapa da Violência, Julio Jacobo Waiselfisz, em entrevista por telefone à AFP.
“Somos cordiais, somos selvagens”
“Somos cordiais, somos selvagens”, intitulou nesta segunda-feira uma coluna do jornal O Estado de S. Paulo assinada pelo ex-diretor de política econômica do Banco Central, Luís Eduardo Assis.
Assis evoca o clássico “Raízes do Brasil”, no qual o historiador Sérgio Buarque de Holanda definia nos anos 1930 o brasileiro como o “homem cordial”. Mas essa “cordialidade”, longe de ser um valor, “representa (…) nossa incapacidade de forjar regras e instituições, nossa relutância em separar o interesse público dos interesses privados”, diz o editorialista.
“Há na América Latina em geral (…) uma cultura da violência” que alcança “um nível epidêmico” no Brasil, afirma Waiselfisz.
“E como em qualquer epidemia, não tem causas evidentes: onde existe uma brecha, se introduz”, acrescenta, ao descartar que a crise econômica ou as drogas sejam os fatores determinantes para a sangria.
O desemprego “incentiva os crimes contra a propriedade”, mas tem que passar bastante tempo para provocar um aumento de crimes contra a vida, explica.
Quanto às drogas, “há interesses de certos setores” em identificá-lo como o problema essencial porque, enquanto prevalecer a estratégia repressiva, “são mobilizados recursos para o sistema de segurança”.
“Não nego que as drogas sejam grande parte do problema, mas por que um país com menor [porcentual de] consumidores que os Estados Unidos, a Noruega ou a Suécia tem essa taxa de homicídios?”, questiona.
“Prisões ou escolas”
Waiselfisz vê, ao contrário, uma possível correlação entre nível de educação e criminalidade.
“A cada rapaz de 17 a 19 anos com o ensino médio incompleto que morre assassinado, há 66 [assassinados dessa idade] com menos de três anos de estudos”, expõe.
“A pergunta que devemos nos fazer é se faltam mais prisões ou mais escolas”, afirma.
Os massacres nas prisões voltaram a dar força às propostas de descriminalizar a maconha e outras drogas, visto que nas superlotadas prisões brasileiras convivem infratores das leis de consumo com integrantes do crime organizado. As prisões, diz o analista, “são uma universidade do crime”.
O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, admitiu que mais da metade dos reclusos nunca cometeu crimes graves. “No Brasil, historicamente se prende muito e se prende mal”, disse recentemente.
“Contrarreforma” repressiva
A Pastoral Carcerária, da Igreja Católica, pediu o desmantelamento de um sistema de exclusão, baseado na “política de guerra contra as drogas, de militarização e da polícia, de prisões provisórias” e de “privatização do sistema carcerário”.
A Câmara dos Deputados, de maioria conservadora e forte influência da chamada “bancada da bala”, discute, ao contrário, flexibilizar a compra de armas, reforçar a criminalização de entorpecentes e reduzir a maioridade penal.
É uma verdadeira “contrarreforma” repressiva, diz Waiselfisz.
Estas medidas têm o apoio de grande parte da população, que considera que “bandido bom é bandido morto”, explica.