Uma das mais inúteis e anacrônicas tradições cartoriais do Brasil é a de achar que todas as mazelas sociais se resolvem por decreto – basta uma autoridade do meio político (justo do meio político, meu Deus!) assinar decreto, e, favas contadas, já se considera que a realidade muda. Basta os senhores parlamentares legislarem um decreto e pronto: inverno vira verão, primavera vira outono, inferno vira paraíso, bandido vira São Francisco de Assis. Essa tradição cartorial faz do Brasil o País da papelada onde nada se resolve com eficiência. Nem poderia ser diferente numa República que, também ela, nasceu de uma penada.

A Câmara dos Deputados, tentando iludir os brasileiros de que ela está tomando alguma séria providência contra a deplorável e inaceitável matança de policiais militares no Rio de Janeiro, em execuções ou assaltos promovidos pelo crime organizado, aprovou projeto de lei que codifica o porte e o uso de fuzil como crime hediondo. Só rindo! Enquanto os deputados aprovavam esse projeto de lei (água com açúcar contra munição pesada), o Morro do Jacarezinho seguia sendo cenário de guerra civil; no Morro Dona Marta os traficantes desafiavam a polícia pendurando fuzil (ficou claro? Fuzil) na estátua de Michael Jackson; uma nova viúva de PM começava a chorar o marido e pai de seus filhos assassinado. E os deputados votando nas nuvens!

Quando a ex-presidente Dilma Rousseff se arvorou de criminalista e criou a lei do feminicídio (excluindo a mulher da espécie humana, já que o termo homicídio compreende homem e mulher, ou seja, compreende seres humanos), nenhum homem espancou mais a sua mulher. O cara ia tomar um goró, mas lembrava: não, não vou não, agora a Dilma impôs o feminicídio, e eu bêbado tento matar minha mulher. Claro que estou sendo irônica: a política criminal de Dilma, por decreto, foi tão eficiente que hoje há no País treze feminicídios por dia.

Com a mesma ironia, pode-se imaginar traficantes depondo fuzis porque agora o seu porte é crime hediondo. Foi assim com os sequestros: a partir da extorsão mediante sequestro de Roberto Medina, esse crime foi enquandrado como hediondo no início dos anos 1990. Não parou de crescer. O mesmo acontece com homicídio qualificado, latrocíno, tráfico e tantos outros.

Combater eficazmente a criminalidade exige que o País tenha polícia bem treinada, bem armada e bem remunerada. Exige que o País tenha escolas para todos. Exige que o País tenha acessibilidade à saúde. Exige que as pessoas não passem fome. Ah, e exige que políticos sejam menos corruptos e exerçam com ética e seriedade seus mandatos. Exige tolerância zero com o crime. Mas político, no Brasil, não gosta de tolerância zero com atos ilícitos. Por que será?

Políticos se valem de decreto água com açúcar contra a munição pesada de traficantes

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