INVENTÁRIO; ARTE OUTRA – Gustavo von Ha/Museu de Arte Contemporânea da USP, SP/ até 5/2/2017

O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo possui o mais importante acervo de arte moderna e contemporânea, nacional e internacional, do País, ao mesmo tempo em que é um centro de formação e pesquisa acadêmica. Nada mais natural, portanto, que ao lado da exposição do acervo permanente do museu, esteja em cartaz a “retrospectiva” de Gustavo von Ha, “Inventário; Arte Outra”.

Pintura com tinta automotiva sobre lona simula action painting
Pintura com tinta automotiva sobre lona simula action painting

A exposição ostenta a clássica museografia das mostras monográficas dedicadas a artistas consolidados pela história da arte: com vitrines de objetos usados nos trabalhos, catálogos e pôsteres de exposições passadas, documentário sobre vida e obra do artista e, logicamente, um panorama de sua obra. Do modo como está montada, a obra de fato ocupa posição de pano de fundo em relação ao inventário documental, teórico, histórico e conceitual construído sobre o personagem Von Ha.

Sim, estamos diante de um personagem que tem como método a canibalização de outro artista e um dos mais célebres procedimentos da pintura moderna: a action painting do norte-americano Jackson Pollock (1912-1956). Alusão, simulação e apropriação talvez sejam palavras menos chocantes do que canibalização. Vale lembrar que apropriação — tanto de objetos triviais da vida cotidiana quanto de peças manufaturadas e imagens de obras de arte de outrem — é prática legitimada desde que, nos idos 1930, o filósofo Walter Benjamin chamou a atenção sobre a radical mudança do estatuto da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

“Como curadora, historiadora e pesquisadora da arte do MAC USP, entendo que a proposição de Gustavo von Ha só poderia acontecer aqui neste museu”, diz a curadora Ana Magalhães para IstoÉ. “Mais do que simplesmente atualizar a crítica institucional, o que ele faz é reconstruir todos os percursos a partir dos quais um artista é legitimado, por assim dizer, pelo sistema da arte. Há a exposição fake, os catálogos fakes, os cartazes fakes, os objetos de ateliê fetichizados, e o documentário fake!”.

“Não Pintura 24LC” outra série de trabalhos expostos, em que von Ha “desmancha” pinturas neoconcretas do acervo do MAC USP
“Não Pintura 24LC” outra série de trabalhos expostos, em que von Ha “desmancha” pinturas neoconcretas do acervo do MAC USP

Todos os elementos — falsos — da exposição são, de fato, peças de uma só instalação, que tem por fim desmontar o mito do grande mestre e o conservadorismo do sistema de arte como ele se configura até hoje. A dessacralização do fazer artístico por Von Ha chega ao ponto de, em projeto criado para a revista de palavras-cruzadas “A Recreativa” (sob direção da editora IKREK), oferecer ao leitor/espectador um passo-a-passo de “Como fazer um Jackson Pollock”.

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Outro aspecto importante que faz com que pesquisadores do MAC USP sejam receptivos a tamanha devassa dos cânones conservadores é o fato de a exposição chamar a atenção para as lacunas do acervo, formado nos anos 1950 e 1960 a partir de um sistema de doações de obras premiadas nas bienais de São Paulo. “Von Ha chama a atenção para esse ruído, porque apesar da tendência dominante do expressionismo abstrato norte-americano nos anos 1950, e de uma monumental sala dedicada à pintura de Pollock na delegação dos EUA para a Bienal de São Paulo em 1957, não temos um Pollock sequer em nosso acervo”, aponta Ana Magalhães.

“Uma das lacunas mais evidentes é a ausência de expressionistas abstratos devido a uma postura política por parte do júri”, ressalta Ana Avelar, curadora da exposição. “Diante disso, pensamos a montagem da exposição num dos andares do prédio que abriga a coleção permanente para que ela se mesclasse ao acervo, criando uma ilusão de que essa lacuna histórica pudesse ser resolvida. Isso no que concerne as telas pollockianas”, diz ela.

As vozes das curadoras ao se referir a Pollock e ao Von Ha real somam-se às de outros especialistas — como Tadeu Chiarelli, diretor da Pinacoteca de São Paulo — que falam, no documentário, sobre o Von Ha fake. Dentro de um museu-escola como o MAC USP, “Inventário; arte outra” é uma aula sobre as necessidades de um autor e um original que ainda assombram a arte contemporânea.

“Estamos experimentando tantas mudanças, o que será a arte no fim deste século?”, indaga a crítica de arte Maria Alice Milliet no documentário. Decifre você mesmo.

Fotos: Divulgação


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