Angenor de Oliveira (1908-1980), ou simplesmente Cartola, lutou contra moinhos, mas, ao contrário de D. Quixote, conseguiu realizar alguns de seus sonhos – autor de clássicos do samba como As Rosas Não Falam, ele teve uma origem muito humilde, conseguiu algum sucesso na música até que, em uma fase misteriosa, sumiu. Dado como morto por alguns amigos, foi reencontrado, anos mais tarde, trabalhando como lavador de carros e vigia de edifícios. O sol começou a brilhar mais forte em 1974, quando, aos 66 anos, gravou o primeiro de seus quatro discos solos e, enfim, alcançar a glória na velhice.

“Ele soube, como poucos, trazer a essência da poesia para o samba”, constata o produtor Jô Santana que, depois de dois anos e meio na batalha, finalmente vai estrear, no sábado, dia 10, Musical Cartola – O Mundo É Um Moinho, espetáculo que homenageia o grande compositor justamente no ano em que o samba completa seu centenário. Para isso, montou uma equipe de respeito, com Roberto Lage na direção, texto de Artur Xexéo e consultoria musical de Rildo Hora, produtor, músico e arranjador que teve contato direto com a maioria dos personagens do espetáculo.

No papel principal, o ator Flávio Bauraqui consegue a proeza de incorporar o estilo de Cartola. “Não busco imitá-lo, mas sim homenageá-lo, pois a imitação está mais atrelada à comédia”, conta ele que, em determinados momentos, assume com incrível semelhança os traços físicos do compositor da Mangueira. Ele não encara o papel como um desafio, mas como um presente. “É uma criação sobre alguém que ouviu ‘não’ a vida inteira, mas que sempre foi atrás do ‘sim’. Assim, temos aqui também um espetáculo de inclusão.”

Bauraqui, que já encarnou outras figuras míticas, como Arthur Bispo do Rosário no filme O Senhor do Labirinto (2010), busca a suavidade dos detalhes.

Especialmente em um momento que o toca muito: quando é tratada a paternidade. “São cenas breves entre pai e filho, mas muito importantes para mim. Meu pai se chamava Claudionor, nome próximo de Angenor, e na peça consigo estabelecer uma aproximação espiritual com ele que não foi possível na vida real.”

Perfeccionista, o ator busca se aproximar do tímido gestual e da sonoridade de Cartola enquanto canta, puxando os erres como se fazia antigamente. Para isso, contou com o apoio de Rildo Hora, que foi violonista de Cartola durante muito tempo, e de Guilherme Terra, que prepara vocalmente o elenco.

Flávio Bauraqui contracena com outros 17 atores, entre eles, Augusto Pompeo (que vive Sebastião, pai de Cartola), Eduardo Silva (Carlos Cachaça, parceiro do músico), Adriana Lessa (Deolinda, a primeira mulher de Cartola), e Virgínia Rosa (Dona Zica, última mulher do compositor). “Eu não queria um musical tradicional, à la Broadway, com atores especializados”, conta Jô Santana, que montou o espetáculo graças, entre outras, à valiosa ajuda de Nilcemar Nogueira, a neta do compositor e diretora do Centro Cultural Cartola, verdadeira guardiã do samba carioca. “Eu pretendia retratar a realidade do morro, onde impera a diversidade física. Assim, no musical, temos pessoas de vários tipos, tanto as mais gordinhas, como grandes artistas da noite LGBT, como Silvetty Montilla, que finalmente tem a chance de mostrar seu talento em um musical, no papel de Amélia, depois de diversas reprovações em audições por não se encaixar em papel algum. O mais incrível é que o Rildo adorou sua forma de cantar. É, de fato, um espetáculo que valoriza a inclusão.”

Com um elenco tão variado, com representantes do samba, do teatro, de musicais e até dança, a homogeneidade ficou a cargo do diretor Roberto Lage nas função cênica e de Rildo Hora e Guilherme Terra. O texto criado por Artur Xexéo retrata a quadra de uma escola de samba que prepara seu desfile de carnaval. O enredo e as alegorias vão homenagear Cartola, mas, para que os componentes não tenham dúvida sobre o assunto, o personagem Carnavalesco inicia a história que retrata fatos importantes da vida do cantor e compositor, em meio a conflitos cotidianos de uma agremiação carnavalesca. Todos os momentos, claro, são ilustrados pelas canções de Cartola que, ao lado de Carlos Cachaça e Zé Espinguela, entre outros, fundou, em 1928, a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, a primeira a separar um espaço para a ala de compositores, incluindo mulheres.

Tamanha diversidade no elenco permitiu a criação de cenas originais, marcadas por boa dose de emoção. É o caso, por exemplo, do momento em que é interpretada a música Fiz Por Você o Que Pude. Nesse instante, Cartola vive um drama ao desistir de escrever um samba-enredo para a Mangueira. Isso porque uma composição anterior ganhou uma absurda nota zero de um jurado. Assim, mesmo na condição de fundador da escola, o que resta a Cartola é aceitar que seu tempo passou. A canção, assim, é apresentada pelo elenco como se fosse o fluxo de pensamentos atormentados do compositor. Um momento triste, mas de rara beleza.

MUSICAL CARTOLA – O MUNDO É UM MOINHO

Teatro Sérgio Cardoso.

Rua Rui Barbosa, 153. Tel.: 3288-0136. 6ª, 20h. Sáb., 21h. Dom., 18h. 2ª, 20h. R$ 30 / R$ 60. Estreia 10/9. Até 31/10

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.