Em vez de brincar ou sair com os amigos, aos 14 anos, Amanda Scavuzzi Martins, passou dias seguidos no quarto, portas 84fechadas, pensando na vida. Ela havia engravidado do namorado e, sem coragem de enfrentar os pais, ficava prostrada na cama, chorando. Mais tarde descobriu que foi acometida por uma forte depressão durante aqueles meses. O drama de Amanda se tornou ainda maior quando, rejeitada pela família, teve de abandonar sua casa para viver uma vida de casada. Hoje, aos 28 anos, ela carrega em sua história marcas desse período. Não conseguiu acompanhar o ano letivo na escola em que estudava, teve de cursar um supletivo e enfrentou outra depressão, após dar à luz. Todos os anos, uma realidade semelhante rouba a infância de 15 milhões de meninas no mundo, que se casam antes dos 18 anos e vivem desamparadas pela família e pela legislação dos países que favorecem esses matrimônios precoces. No Brasil, de acordo com um estudo divulgado na quinta-feira 11, pelo Banco Mundial, 36% da população feminina é vítima dessa situação. Os números nos colocam como o país com maior número de casos na América Latina e o quarto no planeta. “Essas meninas têm mais chances de se tornarem vítimas de violência doméstica e de estupro marital”, afirma Paula Tavares, autora do estudo e especialista em Desenvolvimento do Setor Privado do Banco Mundial.

De acordo com o relatório, existem hoje mais de 700 milhões de meninas no mundo que se casam antes de completar 18 anos. Até o fim da próxima década, mais 142 milhões se casarão. “As consequências são a maior exposição à violência doméstica, o abandono da vida escolar, o que contribui para a diminuição dos índices de escolaridade, maior incidência da gravidez na adolescência, maiores taxas de mortalidade materno-infantil e menor participação das mulheres no mercado de trabalho”, diz Paula. No Brasil, apesar de a lei estipular os 18 anos como idade legal para a união matrimonial e autorizar a anulação do casamento infantil, algumas falhas permitem que esses matrimônios ocorram. Um dos motivos que transforma essa situação em realidade abjeta é que a legislação brasileira libera que meninas se casem a partir dos 16 anos, desde que haja o consentimento dos pais. Em casos de gravidez, a lei autoriza a união em qualquer idade. “A legislação deveria proteger essas garotas e não expô-las ainda mais”, diz Paula. Ao final da gestação, Amanda foi expulsa de casa pela mãe. “Ela nunca aceitou essa situação, brigávamos muito, então achei que seria bom morar com o pai da minha filha”, diz.

MUDANÇA DE CONTROLE
O estudo “Ela vai no meu barco – Casamento na infância e adolescência no Brasil” realizado em 2015 pelo Instituto Promundo revelou que as meninas tendem a idealizar uma vida melhor morando com o marido. Porém, segundo a coordenadora da pesquisa, Alice Taylor, elas relatam que o controle exercido pelos pais apenas é repassado para o companheiro. Outra razão para manter o relacionamento é o medo de arcar sozinha com uma gravidez precoce ou fugir de maus-tratos da família. O estudo estimou que 39% das meninas casadas tiveram o primeiro filho aos 15 anos. Para agravar o quadro, o país não prevê punição para quem autoriza que uma menina com essa idade se case em contravenção à lei ou para os maridos. A maior incidência de casamentos precoces ocorre em regiões com maior índice de pobreza, porém, não se reduz a elas. “O matrimônio infantil priva as garotas de terem um desenvolvimento físico e psicológico saudável e também se mostra um fator perpetuador da pobreza”, afirma Martin Raiser, diretor do Banco Mundial para o Brasil. Amanda admite que em função da gravidez e do período em que viveu com o pai de sua filha teve de abrir mão de uma série de sonhos. “Sempre pensei em terminar meus estudos e fazer um intercâmbio, mas isso não foi possível.”

Essa prática representa um obstáculo significativo na luta pela igualdade de gêneros, já que é um dos mecanismos de reprodução do machismo existente na sociedade. Ambas as pesquisas apontaram que a diferença média da faixa etária entre maridos e esposas é de nove anos. Os homens que contraem esse tipo de união alegam que querem ter alguém para ensinar coisas, que as garotas são mais bonitas, fazem com que eles se pareçam mais jovens e que as mais jovens são melhores para ter filhos. Esse tipo de comportamento coloca em risco a qualidade de vida da mulher e reproduz uma série de desigualdades sociais. “Principalmente em casos de gravidez ou estupro marital, o casamento precoce ainda é visto pela família como uma forma de sanar a função criminal do agressor”, diz Paula. Para o representante do Fundo de População das Nações Unidas (ONU), Jaime Nadal, quando a sociedade permite essa prática, aceita a violação dos direitos das meninas e o comprometimento de seu próprio futuro. Enquanto o Brasil não fizer reformas na legislação de uniões formais e informais realidades nocivas como essas continuarão a se disseminar.